
Os judeus daquela pequena cidade polonesa estavam determinados a reenterrar todos os mortos do cemitério em um novo local. As sepulturas são muito importantes para as almas dos falecidos e não poderiam ser simplesmente destruídas pela prefeitura da cidade.
Durante o trabalho, os membros da Chevrá Kadishá (sociedade encarregada dos serviços funerários) ficaram estarrecidos quando descobriram os restos mortais de um senhor chamado Naftali. Ele havia sido enterrado vestindo roupas de padre. Como um judeu poderia ter sido um padre?! Mais incrível ainda, era que o corpo do senhor Naftali não tinha se decomposto - estava em perfeitas condições, como se tivesse sido recém-enterrado!
Tradicionalmente, sabe-se que somente os corpos de grandes tsadikim permanecem completos e intactos até o momento em que ocorrer a ressurreição dos mortos, na época da vinda do Mashiach. O senhor Naftali teria sido um destes tsadikim, mas por que, então, fora enterrado com roupas de padre?
A notícia da misteriosa descoberta se espalhou rapidamente. Finalmente, depois de alguns dias, um dos anciões da cidade revelou uma série de eventos que ocorreram muitos anos antes.
O senhor Naftali tinha sido o gabay tsedacá da cidade, ou seja, o coletor de dinheiro para caridade. Ele sempre cumpria suas tarefas nobremente, recolhendo fundos dos moradores e distribuindo-os harmoniosamente e com integridade aos necessitados.
Certa tarde, ele chegou em casa depois de recolher dinheiro por toda a cidade para um caso de emergência. Praticamente todos com que havia conversado naquele dia lhe responderam com cortesia e carinho. Com efeito, ele conseguira contribuições de quase todos os moradores da cidade. Ele já tinha levado o dinheiro para a pessoa necessitada e, após a cansativa jornada, pretendia descansar em sua casa.
Enquanto relaxava tomando um copo de chá, um homem carente bateu à sua porta. “Por favor, ajude-me!” implorou. “Mudei-me para esta cidade há pouco tempo e não conheço ninguém. Tenho uma família numerosa e um de meus filhos está doente. Por favor, recolha algum dinheiro para mim. Eu sei que o senhor faz isso de vez em quando.”
O senhor Naftali simpatizou com o homem, mas disse: “Como posso pedir dinheiro às pessoas duas vezes num mesmo dia? Eles se recusariam a dá-lo e, provavelmente, diriam-me para voltar em outra hora!”
O pobre homem continuou se lamentando e disse que sua família não fazia uma refeição decente há vários dias. Então, o piedoso homem acabou concordando em ajudá-lo. Envergonhado e exausto, saiu para tentar uma nova coleta.
Como era de se esperar, as pessoas o encaravam com olhares críticos. Apesar disso, terminavam por contribuir novamente, pois confiavam em sua sinceridade. Depois de duas horas, o senhor Naftali voltou para casa e entregou o dinheiro para o pobre homem. O visitante lhe agradeceu efusivamente por seus esforços e foi embora.
Aproximadamente meia hora depois, outro homem em péssima situação financeira foi falar com o senhor Naftali. Ele também tinha uma história muito triste e, da mesma forma, pediu ao gabay tsedacá que recolhesse algum dinheiro para ele.
Como poderia pedir dinheiro para as mesmas pessoas três vezes num mesmo dia?! As pessoas caçoariam dele e, talvez, até o amaldiçoariam! Mas os apelos e a persistência do pobre homem convenceram o senhor Naftali e ele novamente concordou em ajudar. Com o coração pesado, saiu devagar e hesitante.
Havia um homem na cidade que ele sempre tentava evitar mas, diante das circunstâncias, sentiu que não teria outra opção. Foi procurá-lo. Afinal, ele já havia ajudado antes e o senhor Naftali esperava que o fizesse novamente.
O suposto “cliente” era o filho de um homem muito rico. Tinha tanto dinheiro que nem sabia mais o que fazer com ele. O senhor Naftali o encontrou na taverna da cidade reunido com alguns amigos. O jovem estava bebendo e gritando enquanto jogava cartas com seus amigos bêbados.
Quando o senhor Naftali se aproximou, o jovem bradou com desprezo: “Não me diga que você veio aqui recolher dinheiro novamente!”
“Sim”, respondeu o interlocutor, suavemente. “Detesto incomodá-lo, mas existe uma família carente que precisa de dinheiro urgentemente. Preciso da sua ajuda.”
Após uma breve troca de idéias com seus amigos embriagados, o jovem disse ao senhor Naftali que gostaria de fazer um acordo com ele e perguntou: “Quanto dinheiro você precisa no total?”
“Vinte rublos”, respondeu o homem.
Então, o jovem bêbedo berrou: “Eu lhe dou toda esta quantia, mas com uma condição.”
Todos os freqüentadores do bar se ajuntaram para ouvir o que, já imaginavam eles, seria um terrível plano. “Eu tenho uma batina de padre em casa e vou trazê-la para cá”, começou a explicar o jovem ousado. “Você deverá vesti-la e marchar pelas ruas da cidade. Eu e meus amigos iremos atrás tocando música. Quando voltarmos, eu lhe darei todo o dinheiro que precisar e você não precisará implorá-lo para mais ninguém hoje!”
O senhor Naftali ficou vermelho, e depois branco, de tanta vergonha. Aí estava uma forma de conseguir todo o dinheiro que precisava, mas como poderia pagar um preço tão alto de humilhação e degradação? Por outro lado, todo o caso levaria 20 ou 30 minutos e o assunto estaria encerrado. Ele se pouparia do trabalho de ir pedindo de pessoa em pessoa por toda a cidade novamente. Além disso, evitaria ouvir eventuais recusas de muitos que já haviam doado duas vezes anteriormente. Relutantemente, concordou.
Naquela noite, então, o senhor Naftali marchou pela rua principal da cidade vestido de padre. Atrás dele vinha um bando de jovens bêbados e rudes, berrando, rindo e cantando tão alto que chamavam a atenção de todos. O rosto do senhor Naftali estava vermelho como uma beterraba de vergonha. Os moradores apareciam nas janelas e pensavam que ele tinha ficado louco. Muitos o insultavam por denegrir a posição de gabay tsedacá. Alguns até jogaram ovos no bando.
Mas em pouco tempo o drama terminou. Quando o “padre” e seus “santos” seguidores retornaram à taverna, o jovem milionário deu ao senhor Naftali o dinheiro combinado e disse que podia guardar as roupas de padre. Deu ainda uma contribuição extra por ele ter sido um bom “esportista”.
O senhor Naftali voltou para casa completamente envergonhado e deu o dinheiro ao homem que ainda o aguardava ansiosamente. “Como poderei lhe agradecer?” disse o pobre; mas ele não fazia a mínima idéia do que o senhor Naftali passara para ajudá-lo.
Depois que o pobre saiu, o senhor Naftali, totalmente exausto, atirou a batina de padre num canto de seu guarda-roupas e jogou-se na cama.
Alguns meses depois, o grande rabino Rav Chayim Sanzer (Rav Chayim Halberstam de Sanz, 1793-1876), autor do livro “Divrê Chayim”, visitou aquela cidade. Quando andava pelas ruas, o Sanzer Rav disse ao seu ajudante que estava sentindo um aroma do Gan Êden, o Paraíso. Ele disse ainda: “Há algo excepcionalmente santo nesta cidade!” Quando passaram em frente à casa do senhor Naftali, o rabino pediu ao seu ajudante que batesse à porta e descobrisse quem morava lá. Logo saiu o senhor Naftali e cumprimentou-os calorosamente.
O Sanzer Rav lhe falou que a fragrância de Gan Êden estava vindo da sua casa, mas o senhor Naftali não conseguia captar o que o grande rav queria dizer. Então, o Rav Chayim Sanzer entrou na casa e sentou-se na sala. Depois de alguns instantes levantou-se e apontou para o armário, dizendo: “Essa é a fonte daquela fragrância!”
O senhor Naftali foi até o armário e abriu-o. O grande rav estremeceu. Pegou a batina amassada de padre e disse: “Está vindo daqui! Conte-me a história destas roupas.”
O senhor Naftali se lembrou da provação que passara usando aquelas roupas. Sentiu toda a vergonha novamente, mas resolveu contar a história. Rav Chayim ouviu atentamente o homem contar tudo o que tinha acontecido. Quando ele terminou, o rabino disse: “Por causa deste incidente você irá direto para o Gan Êden, o Paraíso. Deixe instruções à sua família para que, quando você morrer, seja enterrado com estas roupas. Os malachê chavalá (anjos da destruição) não se atreverão a tocá-lo.”
E assim aconteceu. Por isso, quando o pessoal da Chevrá Kadishá estava desenterrando os mortos, encontraram o senhor Naftali vestido com a batina de padre. O seu corpo não havia se decomposto nem um pouquinho, pois ele tinha sido um verdadeiro tsadic.
Tradução da história “The Priest’s Garments”
do livro “The Maggid Speaks” do Rabino Pessach J. Krohn.
Publicado com permissão da Mesorah Publications.