
Quando a guerra irrompeu na Europa, o redemoinho diário dos eventos fez com que as yeshivot ficassem num permanente estado de alerta de fuga. Os acontecimentos relatados a seguir sucederam durante toda aquela agitação, o que tornava a concentração nos estudos extremamente difícil. Mas, ainda assim, devido a uma extraordinária perseverança e força de vontade, o estudo nas yeshivot floresceu, e o Rabino Tuvya esteve lá para testemunhar e participar destes episódios.
As personalidades admiráveis envolvidas nesta história e a perspectiva com que o Rabino Tuvya encarou os eventos são impressionantes e servem como inspiração para nossas vidas. Sinto-me uma pessoa de sorte por ter ouvido este episódio dele, pessoalmente.
Na véspera de Rosh Hashaná de 1939, os alunos da Yeshivá de Kamenitz, na Polônia, souberam que os alemães tinham invadido o país. Muitos deles já imaginavam que a Polônia seria ocupada por alguma potência estrangeira e que poderiam ser obrigados a fugir para outro país. Eles sabiam que, não importava para onde fugissem, o dinheiro polonês que possuíam não valeria para nada. Com isto em mente, compraram muitos mantimentos, pois pensavam que poderiam vendê-los ou trocá-los por algum sustento no lugar para onde fossem. A decisão foi de comprar sacas de açúcar e centenas de pares de meias grossas para o inverno. Essas mercadorias teriam demanda por toda a Europa Oriental.
As mercadorias foram compradas e escondidas em um local seguro. Todos na yeshivá sabiam que sua sobrevivência no futuro poderia depender destes suprimentos.
No dia de Yom Kipur, entretanto, repentinamente os nazistas invadiram o bêt hamidrash, o salão de estudos da yeshivá, e exigiram que os alunos lhes entregassem todo o seu estoque de mantimentos. Os nazistas ameaçaram sequestrar e matar o rosh yeshivá (diretor da yeshivá), rabino Baruch Ber Leibowitz (1870-1941) se os rapazes não atendessem suas ordens.
Os alunos suspeitaram que, provavelmente, algum polonês anti-semita tinha os visto comprando grandes quantidades de suprimentos e avisara as autoridades alemãs. O delator poderia ser até mesmo o próprio homem que lhes vendera as mercadorias. De qualquer forma, naquela situação eles não podiam arriscar a vida de seu amado rosh yeshivá e não tiveram outra opção a não ser entregar tudo o que compraram.
Os alemães permaneceram somente onze dias na Polônia. Então, o exército russo invadiu o mesmo território e tomou-o dos inimigos.
Nesta época, o rabino Chayim Ozer Grodzenski (1863-1940), que vivia em Vilna, na Lituânia, conclamou todas as yeshivot da Polônia a fugirem para a Lituânia. Depois da invasão russa, muitas yeshivot, como por exemplo as de Radun, Grodno, Baranovich e Mir, realmente mudaram-se para Vilna ou seus arredores.
Numa noite de motsaê Shabat, os alunos da yeshivá de Kamenitz, entre eles o jovem Tuvya Goldstein, então com 22 anos, fugiram de trem para uma pequena cidade na Lituânia, chamada Lukashkeh. A viagem levou um dia e meio.
* * *
O rigoroso inverno já tinha iniciado na Lituânia e faltava madeira para o aquecimento da yeshivá de Kamenitz, agora em Lukashkeh. Os alunos se enrolaram em seus casacos e puseram-se a estudar, enquanto o frio cortante penetrava pelas frestas da parede do prédio que ocupavam.
Foi durante estas semanas em Lukashkeh que o rabino Reuven Grozovsky (1896-1958), genro do rabino e diretor da yeshivá, Baruch Ber, ministrou uma impressionante palestra que ainda soa nos ouvidos do rabino Tuvya até hoje, mais de 50 anos depois.
Em sua palestra, ele citou o Rambam (Maimônides), no seu livro “Hilchot Talmud Torá” - Leis de Estudo da Torá - que detalha as obrigações de cada pessoa em estudar Torá, mesmo sob as mais adversas condições. “O Rambam escreve”, falou o Rabino Reuven, “que todo judeu é obrigado a estudar a Torá independente de ser rico ou pobre, de ter uma saúde perfeita ou o contrário, de ser velho ou jovem...”. O rabino conclamou os jovens alunos a resistirem bravamente a este teste de D’us como sinal de sua perseverança e determinação.
“Suas profundas palavras deram ânimo, um fortalecimento para muitos de nós, meses depois”, relembra o rabino Tuvya.
Todos os membros da yeshivá de Kamenitz ficaram em Lukashkeh somente algumas semanas, pois temiam que Vilna também fosse invadida pelos russos. De Lukashkeh eles viajaram em sentido nordeste para outra comunidade na Lituânia, chamada Rassain. Lá, a situação era um pouco melhor, já que os moradores judeus apoiavam muito os que estudavam numa yeshivá.
Segundo as leis locais, contudo, todo refugiado que entrasse em Rassain com a intenção de morar com alguma família da cidade, deveria se registrar na prefeitura. Como não havia dormitórios para os alunos da yeshivá naquele momento, os garotos se alojaram em casas de famílias. Daí, passou a existir um registro com os nomes e endereços de 86 jovens. Mais de 100 outros alunos, entretanto, conseguiram evitar o registro.
Depois de um ano de tranquilidade, a paz superficial foi quebrada para sempre. Num domingo à noite, quando os alunos estavam estudando em seu salão de estudos em Rassain, um membro do partido comunista russo entrou com um aviso urgente. A União Soviética anexara a Lituânia e existia uma boa chance de que todos os alunos fossem recolhidos em breve. Joseph Stalin, então líder soviético, ordenara que todo o clero e os capitalistas da Lituânia fossem levados para interrogatório e, possivelmente, deportados. Eles eram considerados adversários do partido comunista.
O judeu comunista revelou também que fora sua mãe que o convencera a alertar os alunos da yeshivá sobre o que estava acontecendo. Ele disse, porém, que não podia e não iria aceitar nenhuma responsabilidade pelo que viesse a acontecer com qualquer um deles. Tudo o que sabia, disse ele, é que o cerco poderia começar a qualquer momento. Depois de passado o recado, o soldado se retirou e seguiu seu caminho.
Os jovens ficaram aterrorizados com as novidades. Deveriam se esconder? Será que teriam um dia ou dois para formar algum plano? Será que a situação era realmente séria? Ninguém estava certo de nada.
Mais tarde, naquela mesma noite, pouco depois da meia-noite, souberam a resposta. Oficias da NKVD, a polícia secreta soviética, espalharam-se por aquelas redondezas, acordando as pessoas e exigindo que todos os religiosos - no caso, os alunos da yeshivá - os acompanhassem.
O Rabino Tuvya era um dos que estavam registrados na prefeitura com nome e endereço. Ele estava pegando suas roupas na casa de uma senhora lavandeira, quando ouviu o temeroso bater na porta. Logo depois, um soldado russo ordenou-lhe que pegasse suas coisas e o acompanhasse.
- A roupa dele ainda está molhada! - protestou a mulher. - Você não pode esperar um pouco?
Então, o soldado riu e respondeu: - Na Sibéria não faltará tempo para elas secarem!
O Rabino Tuvya correu para pegar seus tefilin e um livro muito precioso - a nova edição impressa dos comentários do rabino Chayim Soloveitchik sobre o Rambam. Enquanto empacotava tudo, o cruel soldado russo confiscou-lhe o livro e os tefilin e exclamou sarcasticamente: - Você não terá tempo de estudar no lugar para onde está indo! Lá você trabalhará todo o tempo!
Os outros 85 meninos que estavam registrados na prefeitura também foram pegos naquela noite. Na manhã seguinte, todos foram levados para estábulos, onde ficaram presos junto com os animais por três dias.
* * *
Foi durante estes três dias de destruição e aniquilação por toda a Lituânia, que o grande sábio, Rabino Elchanan Wasserman (1875-1941), foi brutalmente assassinado pelos agressores lituanos em Slobodka, enquanto ministrava sua aula noturna para 11 jovens. O Rabino Yoná (Minsker) Karpilov, um dos melhores discípulos da yeshivá de Mir, estava entre os tragicamente assassinados junto com o Rabino Elchanan.
* * *
Na manhã do quarto dia, os alunos presos no estábulo foram colocados em três vagões de trem. O Rabino Tuvya e outros 23 jovens foram empurrados para dentro de um deles. Neste momento, o Rabino Tuvya viu um outro rapaz correndo em sua direção. Era seu chavruta (colega de estudos). Gritando e chorando, o jovem lhe entregou um casaco grosso de inverno, um pacote com pão e um pequeno saco com açúcar. “Eu juro a você”, disse o rapaz com voz entrecortada, “que não me casarei enquanto não conseguir trazê-lo da Sibéria vivo.”
Logo depois o vagão partiu. O Rabino Tuvya temeu que nunca mais fosse ver seu amigo.
A Sibéria significava morte certa para os velhos, para os fracos ou para os que possuíam saúde frágil. O Rabino Tuvya era jovem, mas como suportaria o frio da Sibéria? Sobreviveria aos trabalhos forçados? “Se ao menos não tivesse se registrado na prefeitura de Rassain...” pensou consigo mesmo. Estaria então em liberdade, como o seu chavruta... Os rapazes não registrados permaneceram em Rassain, com a chance de fugir para outro local. Na Sibéria, porém, não haveria como escapar das garras dos “ursos” russos.
Mas, de alguma forma, o Rabino Tuvya sobreviveu na Sibéria por longos cinco anos e meio. Sobreviveu apesar do frio, dos trabalhos, da fome, dos espancamentos. A despeito da agonia de testemunhar a morte perante seus olhos e da alarmante e traumática perspectiva de que poderia ser morto a qualquer momento, ele conseguiu resistir. Era a vontade de D’us que ele vivesse para contar suas experiências.
Depois da guerra, o Rabino Tuvya foi repatriado para a cidade de Lodz, na Polônia. Lá, foi recebido pelos representantes do Váad Hatsalá. O Váad Hatsalá era uma organização que se dedicava a resgatar judeus europeus durante a Segunda Guerra e, depois dela, a ajudar os sobreviventes do Holocausto. Estes yehudim trouxeram comida e roupas para o Rabino Tuvya e para os outros sobreviventes que chegaram àquela cidade.
Em Lodz, o Rabino Tuvya tomou conhecimento de terríveis notícias. Os russos, sob ordens de Stalin, atacaram a Lituânia e milhares de pessoas foram mortas. Entre elas, estavam mais da metade dos alunos da yeshivá de Kamenitz, incluindo o chavruta do Rabino Tuvya. Então, ele se lembrou da mishná no Tratado de Berachot (54a) que nos ensina: “As pessoas devem bendizer D’us pelo ruim (que lhes acontece) da mesma forma que abençoam pelo bem.” Esta passagem geralmente é entendida significando que, mesmo que alguma coisa realmente “ruim” aconteça para alguém, ele deve aprender a aceitá-la. No entanto, o Rabino Tuvya contou que as experiências em Rassain e na Sibéria fizeram-no encarar a mishná por um prisma diferente. Ele percebeu que esta passagem quer nos explicar que as pessoas devem ser agradecidas a D’us também pelo ruim - pelo que imaginam ser ruim. Pois o homem, com seu entendimento limitado, pode entender como ruim algo que, pela perspectiva do Todo-Poderoso, é na verdade um grande bem.
Analisando os incidentes pelos quais passou, o Rabino Tuvya entendeu que, por ter se registrado na prefeitura de Rassain, foi salvo do massacre russo. Justamente o que ele imaginava ter sido um grande revés foi o que acabou salvando a sua vida.
Tradução da história “A Decree Defined” no livro “In the Footsteps
of the Maggid”.