Matérias >> Edição 192 >> Comemorando II

Vontade de Viver

R. Elie Bahbout

Um enfoque sobre a escravidão no Egito e a punição dos egípcios

Quando Moshê Rabênu se apresentou pela primeira vez perante o Faraó, realizou três milagres: 1º) Transformou seu bastão em uma cobra. 2º) Sua mão ficou leprosa e depois curou-se. 3º) Transformou em sangue a água contida num utensílio.

Nossos sábios explicam no Midrash1 que os dois primeiros milagres tinham o objetivo de explicar para o Faraó quais eram os prejuízos espirituais que o Egito causava ao povo de Israel.

O fato de o bastão transformar-se em cobra representa o comportamento egípcio em relação aos judeus. Assim como uma cobra pica e mata, da mesma forma os egípcios “picavam” e matavam os judeus. A cobra se transformou novamente em bastão para demonstrar que os egípcios também seriam punidos por D’us, a ponto de serem comparados com um “galho seco”.

O fenômeno de a mão de Moshê ficar leprosa aconteceu para advertir ao Faraó que, assim como um metsorá (leproso) é impuro e contamina todos os que entram em contato com ele, da mesma maneira os egípcios são impuros e impurificam o povo de Israel. A mão de Moshê curou-se, demonstrando que D’us purificará seu povo da impureza egípcia.

O terceiro milagre, quando a água transformou-se em sangue, não foi uma mensagem relacionada com a má conduta egípcia. Foi uma introdução às eventuais pragas que aconteceriam se o Faraó não aceitasse abolir a escravidão judaica.

A explicação do Midrash citado necessita de alguns esclarecimentos. A fauna é repleta de predadores, como por exemplo, o leão. Por que D’us escolheu comparar o tipo de assassinato realizado pelos egípcios ao comportamento da cobra, em vez de referir-se a outro animal?

Também sabemos que toda punição Divina é precisamente relacionada ao pecado cometido, “midá kenêgued midá” - medida por medida. Então, por que a transformação em um “galho seco” é uma punição relacionada com o fato de os egípcios assassinarem como cobras?

Antes de responder propriamente estas questões, analisemos melhor o motivo pelo qual os egípcios começaram a escravizar os judeus. Conforme consta explicitamente na Torá (Shemot 1:10), quando o povo judeu começou a crescer em número, os egípcios temeram que, em caso de guerra, os judeus formassem alianças com inimigos egípcios. Esta afirmação levanta a seguinte questão óbvia: Por que iriam os judeus, que até então viviam em harmonia com os egípcios, aliarem-se aos inimigos? Yossef Hatsadic se empenhou sobremaneira no bem estar do povo egípcio. Agora, sem nenhum motivo, juntar-se-iam os judeus a um povo desconhecido para combater seus anfitriões?

O comentarista Seforno zt”l explica o motivo do temor dos egípcios. Os judeus se comportavam de forma distinta dos egípcios. Sua fé, cultura, costumes, vestimentas, nomes e língua eram extremamente diferentes dos egípcios. Isto levou os egípcios a suspeitarem que, ocultamente, os judeus odiassem o povo egípcio. Esse ódio seria o motivo de não se influenciarem pela cultura egípcia. Portanto, em caso de guerra existiria o perigo de os judeus se aliarem às tropas inimigas.

Antes de continuar o raciocínio no sentido de responder as questões sugeridas, cabe aqui uma importante colocação sobre esta alegação dos egípcios. Esta teoria, de que os judeus eventualmente se uniriam aos inimigos, foi somente o “motivo físico” pelo qual os egípcios resolveram submeter os judeus à escravidão. No entanto, nossos sábios revelam, no Midrash Yalcut Shim’oni2, o verdadeiro “motivo espiritual” pelo qual D’us colocou nas mentes egípcias a teoria citada. A verdadeira razão para isto foi que os judeus começaram a misturar-se com os egípcios, passando a frequentar teatros e circos. Infelizmente, este fenômeno pode ser observado em todas as gerações: quando os judeus começam a igualar-se aos povos alheios com os quais convivem, o Todo-Poderoso faz com que esses próprios povos se revoltem contra os judeus com o argumento de que são diferentes. Ou seja, reaparece o anti-semitismo ativo. D’us usa os povos para lembrar os judeus que são um povo diferente. Se os próprios judeus não compreendem sozinhos que não devem se misturar com outros povos, os próprios povos repelem a companhia judaica.

Tendo em vista as palavras do Seforno citado, de que os egípcios temiam o fato de os judeus serem diferentes, entendemos melhor a intenção do plano maléfico do Faraó em submeter os judeus a serviços pesados. O Faraó entendeu que os judeus, mesmo vivendo no Egito, permaneciam fiéis à sua fé e suas tradições. Se conseguiam isso, era devido à sua grande força de vontade, ou seja, à enorme “chayut” - vitalidade - do povo judeu. Para quebrar esta “força de vontade”, forçou os judeus a trabalharem dia e noite em tarefas extremamente difíceis, amargando seriamente suas vidas.

Uma pessoa cuja vida é um verdadeiro pesadelo, perde a vontade de viver. Em consequência, passa a ser completamente apática, perde toda a “vitalidade”, a força de vontade para realizar qualquer coisa. Assim, o Faraó ordenou aos judeus construírem as cidades de Pitom e Raamsês. Conforme explicam nossos sábios3, o lugar escolhido tinha um solo movediço. Sendo assim, os prédios que os judeus construíam tombavam novamente em pouco tempo. Portanto, fica claro que a principal intenção do Faraó não era ter proveito da mão de obra judaica, mas sim usar técnicas psicológicas para anular a vitalidade e a força de empenho dos judeus. Mesmo alguém que trabalha dura e forçadamente para construir um prédio, tem ao menos a satisfação ao ver a construção erguida, a obra acabada. Assim, tem o sentimento de que seus esforços não foram em vão. Mas o Faraó queria evitar qualquer satisfação dos judeus. Desejava que todo o trabalho dos judeus fosse claramente inútil, para assim perderem o “gosto de viver”, o ânimo e a vontade de esforçarem-se por manter os costumes judaicos.

Nossos sábios também explicam4 que o Faraó determinava serviços femininos para os homens e serviços masculinos para as mulheres. Nisso também se percebem os métodos maléficos do Faraó. Alguém que trabalha em afazeres incompatíveis com a sua personalidade, tem muito menos ânimo e paciência para enfrentar o seu dia-a-dia.

O Faraó obteve sucesso com seus métodos. Conforme descrito pela Torá5, os judeus se tornaram extremamente apáticos, ao ponto de nem terem força para se empolgar com a notícia de que Moshê os salvaria do Egito.

Entendemos agora por que a atitude egípcia é comparada à de uma cobra. Quando a cobra quer se alimentar de um animal, primeiramente insere seu veneno nele, para que enfraqueça ou até mesmo morra. Somente depois o engole. Assim também, os egípcios tornaram os judeus apáticos e com falta de vontade de viver, para que então fossem absorvidos e integrados ao povo egípcio.

De fato, os judeus foram influenciados pela cultura egípcia. Passaram a imitá-los, chegando até a servir falsos deuses. A impureza dos egípcios atingiu o povo judeu - assim como um leproso é impuro e contamina todos que têm contato com ele.

A punição que o Criador escolheu para o povo egípcio foi transformá-los em um “pedaço de pau seco”. Ou seja, assim como um tronco ou galho secam por falta de elementos necessários para sua vida, assim também os egípcios “secaram”, perderam a vitalidade, a vontade para continuar a seguir no dia-a-dia. Isso aconteceu por intermédio das dez pragas. Com estas pragas os egípcios foram afetados em todas as suas fontes de satisfação: suas plantações, seus animais, suas casas, seu bem-estar, seus filhos primogênitos - que eram o orgulho do lar egípcio - e assim por diante.

A Torá6 relata que, antes de saírem do Egito, D’us ordenou aos judeus que fizessem Berit Milá e o Corban Pêssach. Nossos sábios7 explicam que, graças ao mérito dessas duas mitsvot, o Povo de Israel pôde ser redimido do Egito.

Por que justamente essas duas mitsvot foram necessárias para sermos merecedores da redenção? Segundo tudo o que foi explicado anteriormente, esta questão também pode ser esclarecida. O Berit Milá é a mitsvá que os judeus sentem mais felicidade em cumprir. Isso é comentado por nossos sábios no Talmud8. Por isso, apesar de ser uma das mitsvot mais difíceis da Torá, mesmo os judeus afastados dos assuntos religiosos fazem questão de cumpri-la. Sendo assim, essa mitsvá funcionou como um “remédio” para o “côtser rúach”, o estado apático no qual tinham se enraizado os judeus. Esta mitsvá demonstra a “força de vontade” judaica - que estão dispostos a cortarem a própria carne para fazer a vontade de D’us. Esse ato teve a força de reparar a falta de ânimo da qual sofreram tantos anos.

A mitsvá de “Corban Pêssach” consistia em pegar um cordeiro, degolá-lo e comê-lo. Os cordeiros eram animais idolatrados pelos egípcios. Com este ato, os judeus se desligaram de toda a idolatria e cultura egípcia que tinham adquirido. “Purificaram-se” com isso da impureza egípcia.

Em nossos dias, é comum o stress do mundo moderno e a correria atrás do sustento. Em gerações anteriores, que contentavam-se com pouco, estes conceitos eram menos marcantes. Hoje existe o perigo eminente de não termos paciência e força mental para dedicarmos ao serviço de D’us - como frequentar aulas de Torá diariamente, por exemplo. Portanto, em nossos dias, estamos novamente expostos ao risco de tornarmo-nos apáticos em relação ao cumprimento de nossa obrigações judaicas.

A influência prejudicial dos conceitos existentes sobre o objetivo da vida, sugeridos pelos povos que nos rodeiam, também é quase inevitável. Assim como a influência da idolatria no passado, estes conceitos são basicamente opostos aos ditados pela Torá.

Os perigos do passado - a apatia e a idolatria - existem hoje de uma forma camuflada. Assim, devemos nos fortificar no sentido de apegarmo-nos à Torá ao máximo, estudando-a e cumprindo as suas mitsvot. Por este mérito presenciaremos a concretização do versículo9: “Como nos dias da saída do Egito, mostre-nos milagres”.

Referências Bibliográficas


1. Midrash Tanchumá, Parashat Shemot 23.
2. Parashat Shemot 162.
3. No Tratado de Sotáh 11a.
4. No Tratado de Sotáh 11b.
5. Shemot 6:9.
6. Parashat Bô.
7. Shemot Rabá 17, 3.
8. Shabat 130a.
9. Michá 7:15.