Matérias >> Edição 192 >> Comemorando III

Sobre o Passado e o Presente

Rabino Yochanan David

Centenas de milhares de judeus morreram como mártires. Qual o mérito dos alunos de Rabi Akiva, para serem lembrados até hoje durante os dias de Sefirat Haômer?

No barulhento refeitório da convenção dos professores, um grupo de pessoas se debruçou sobre o jornal vespertino que fora trazido há pouco.

- Vejam o que escreveram sobre o incidente de ontem! - disse irritado um dos professores religiosos a seu companheiro.

O texto falava da inauguração festiva de uma convenção de professores, que ocorrera no dia anterior no Palácio da Cultura. O outro leu o artigo e pronunciou em voz alta o final da notícia:

- “Na convenção organizada, os professores religiosos se opuseram à apresentação de uma orquestra na cerimônia de inauguração por ocasião do luto dos dias da contagem do Ômer. A oposição, porém, foi negada e a orquestra desempenhou sua exibição. Quando a apresentação do coral jovem começou, os professores religiosos presentes se levantaram e abandonaram o salão...”

- A informação é fatual - disse o professor que acabara de ler a notícia - mas qual o significado dos três pontinhos de reticências no final? Será que o redator tinha a intenção de zombar dos valores judaicos?

- Por que você questiona o jornalista? - disse outro professor. É possível que ele não tenha culpa nenhuma. Quem sabe qual a “orientação” judaica que seus professores não observantes da Torá lhe transmitiram na escola sobre os dias da Sefirá e sobre o luto que vigora nesses dias?

- E quem sabe o que os próprios professores nas escolas sabem sobre esse assunto? - continuou o interlocutor enquanto apontava para alguns professores leigos que rodeavam a mesma mesa do refeitório.

O Sr. David, um destes professores, meneou a cabeça e disse:

- Eu sei que na Sefirat Haômer nós contamos 49 dias, desde o dia da oferenda do sacrifício do Ômer no Bêt Hamicdash, no segundo dia de Pêssach, até a festa de Shavuot. Mas qual o motivo do luto nesses dias? Qual a ligação entre as duas coisas?

Rapidamente um dos presentes disse:

- Permitam-me responder, por favor. Eu sou professor de História. Consta que durante os dias desta contagem morreram muitos alunos de Rabi Akiva em uma epidemia. O luto se dá por causa da morte desses alunos.

- Eu admiro vocês, religiosos, pelo seu amor à História Judaica e pelo valor que dão a cada detalhe dela - continuou dizendo o Sr. David. - Parece-me, porém, que desta vez vocês exageraram um pouco. Vocês saem do recinto estragando a boa atmosfera da nossa abertura festiva! E qual o argumento? Que há milhares de anos morreram, em uma epidemia, judeus que nem mesmo o nome vocês conhecem! É muito bonito se interessar pelo passado, mas o passado morreu e nós vivemos no presente. Nós devemos viver o presente e não condicioná-lo a um passado distante, nebuloso e vago!

Os professores religiosos trocaram olhares e um deles, o Sr. Efráyim, começou a responder:

- Primeiramente, devo observar que esta sua visão não é uma visão moderna. Todos, nos nossos dias, procuram suas raízes no passado, tentam descobri-lo e revivê-lo. O ser humano de nossos dias que não conhece quem foram seus antepassados há algumas gerações, sente que lhe falta uma base sólida na qual possa se apoiar. Ele está disposto a pagar especialistas no assunto para revirar bibliotecas e pesquisar túmulos em cemitérios antigos para descobrir mais uma parte da história de seus antepassados, mais uma fatia de seu passado... As pessoas, hoje, são orgulhosas de seu passado, mesmo quando não há nada nele para se orgulhar. Há pessoas que se orgulham, por exemplo, quando descobrem que um de seus antepassados distantes foi um feiticeiro ou um chefe tribal em alguma selva africana. Por que entre nós, os judeus, há indivíduos que desdenham seu passado? Nós possuímos um passado grandioso e esplêndido. Não há necessidade de procurá-lo com uma vela. Este passado é claro e óbvio a todos, estendido nas páginas da vasta literatura do nosso povo.

- Muitos educadores - continuou o Sr. Efráyim - com seu modo particular de encarar os fatos, querem formar criaturas desligadas de seu passado, consumidores do imediato e do instantâneo. Pessoas sem raízes e, portanto, também sem frutos. Homens cuja realidade nacional começa com a independência do Estado de Israel ou pouco antes. Estes cidadãos serão incompletos como nação do ponto de vista emocional, resultado do desligamento com o seu passado.

- Como professor de História eu concordo em base com você - afirmou o professor David, que ouvira atentamente as palavras do colega. - Eu também ensino a nossa história para os alunos, mas extrapolar os limites do bom senso a ponto de se enlutar por judeus que morreram há milhares de anos!... Isso me parece extremamente exagerado.

- Mas é justamente neste ponto que tocamos num dos princípios básicos do judaísmo e da psicologia humana - explicou o professor Efráyim. - Segundo o judaísmo, não se herda algo, como parte de si, unicamente por meio do conhecimento, mas sim, por meio da prática. Todos os valores da Torá estão relacionados com o cumprimento das mitsvot. O objetivo desse cumprimento é aprofundar os valores da Torá na alma e enraizá-los na realidade de quem os cumpre. O que resta do que você ensina a seus alunos depois da prova da matéria lecionada? Será que somente o conhecimento do povo e da terra bastam para impedir a assimilação dos judeus por todo o mundo? Quando um jovem judeu deixa de ouvir música nestes dias de luto pela morte dos alunos de Rabi Akiva, ele se “amarra”, de forma prática e ativa, a seu povo. Este é o caminho da Torá que corresponde à psicologia humana.

- Entendo seu ponto de vista. - declarou o Sr. David, agora mais interessado no diálogo - Segundo sua explicação, também posso entender por que os jovens praticantes do judaísmo vivem sua nacionalidade de forma muito mais ativa que os demais. A falta de proporcionalidade, porém, ainda me incomoda. Durante a História, trilhada com sangue por nosso povo, perdemos centenas de milhares de judeus em tantas oportunidades... As destruições do primeiro e do segundo Templos, diversas rebeliões e guerras, a Inquisição e as cruzadas, outros tantos pogroms e agitações anti-semitas sem fim! Isto sem contar o Holocausto, ainda fresco, com suas seis milhões de vítimas. Qual é o “mérito” dos alunos de Rabi Akiva, para que o luto por sua morte seja lembrado eternamente na tradição do povo, todos os anos, com sinais de luto durante os dias da Sefirá?

- Você fez uma pergunta pertinente - concordou o professor Efráyim. - É possível que exista mais de uma resposta para ela. Vou tentar esclarecê-la da forma que a respondo a mim, com uma analogia: Há alguns anos explodiu um avião de passageiros sul-americanos. Este avião estava repleto de personalidades que voltavam de um congresso de medicina internacional. Para este congresso, viajaram quase todos os médicos importantes deste país: a elite de médicos dos principais hospitais, diretores das faculdades de medicina, pesquisadores de primeira linha, representantes do Ministério da Saúde e muitos mais. Nenhum dos passageiros do avião escapou com vida. Um especialista em medicina declarou que aquele país retrocedera vários degraus com o acidente, quanto ao nível e avanço do conhecimento médico. Seria necessário esperar a formação de uma nova geração de médicos, ou talvez mais, para tentarem se recuperar do trágico acontecimento. Uma perda desta magnitude é irreparável. Outros cientistas não possuiriam exatamente os mesmos conhecimentos dos anteriores, baseados na realidade daquele país. Qualquer solução que pudesse ser encontrada serviria apenas como um remendo que não restabeleceria a qualidade da fonte original.

- Imaginemos - continuou seguindo o raciocínio o professor Efráyim - que explodisse um avião de um país com praticamente todas as personalidades da cultura única daquele país. Escritores e intelectuais, músicos e poetas, especialistas no folclore e na língua locais. Não há em valores materiais que compensem tal perda. Quantas gerações a população levaria para tapar o buraco aberto em sua cultura? Não é exagerado dizer que este rombo nunca seria fechado completamente!

- A cultura da Torá do Povo de Israel - seguiu o professor - é única e somente sua. Os “transportadores” desta cultura representam elos de uma corrente que se inicia em Moshê Rabênu, que recebeu a Torá no Monte Sinai. A corrente do conhecimento judaico passa pelas casas de estudos, onde alunos sentam em frente a seus rabinos e recebem deles o que receberam de seus mestres, e assim sucessivamente.

- Imaginemos que - continuou o raciocínio, agora em tom mais grave - em alguma geração fossem assassinados, D’us nos livre, todos os grandes sábios da Torá, mestres da nossa tradição e transportadores da Torá Oral. Não há como descrever nem como calcular a magnitude do prejuízo espiritual desse massacre! Não existiriam pessoas de fora que pudessem curar nem mesmo uma fração da ferida causada por este golpe. Inclusive os grandes discípulos daqueles sábios, que seguissem estudando a Torá e porventura emergissem como novos sábios, não poderiam, de forma alguma, preencher a deficiência causada na tradição. Apesar de que a tradição judaica da Torá Oral esteja constantemente decrescendo de nível no decorrer da História, no caso exposto, o decréscimo não seria moderado. Ocorreria uma queda radical no nível do conhecimento da Torá, da qual não se poderia esperar um novo fortalecimento.

- É sabido - prosseguiu o professor Efráyim, passando sua angústia a todos os presentes - que todos os transportadores da Torá de uma geração no passado eram os alunos de Rabi Akiva. Como Rabi Akiva era o maior dos mestres de sua geração, todos os estudiosos da época foram, em algum tempo, alunos seus. Eles estavam espalhados por toda a Terra de Israel, em todas as cidades, aldeias e lugares onde havia judeus. Cada um deles espalhava a luz da Torá à sua volta, para a sua família, seu bairro e sua cidade. Eles iluminavam todo o Povo de Israel. Quando pereceram na epidemia, num período de apenas trinta e três dias, e foram arrancados da paisagem espiritual do Povo de Israel, surgiu um rombo imenso na muralha cultural da Torá, que nunca pôde ser tapado.

O clima na roda de professores era de tristeza. Ninguém tinha vontade de falar. Apenas ouviam as valiosas ponderações do colega, que concluiu:

- Quem sabe como eu e você nos pareceríamos, do ponto de vista espiritual, se todos estes alunos de Rabi Akiva tivessem continuado vivos... Se cada um destes sábios seguisse agindo pelo bem espiritual e formando alunos...

- Eu me enluto hoje pela elevação espiritual que não possuo, pelo grau espiritual que teríamos, eu, você e todos nós, se os alunos de Rabi Akiva tivessem sobrevivido e continuado suas atividades de forma normal. Esta é a verdadeira razão do meu luto.

- Há pessoas que imaginam que damos importância ao passado apenas como passado. Não é assim. O passado é importante para nós por ser parte do presente. Um acontecimento isolado do passado, que não possui projeções no presente, é um assunto que interessa apenas a arqueólogos e amantes de museus. Nós vivemos e nos interessamos pelo presente, onde o passado ocupa função essencial. Aquele que permanece indiferente a este passado, também não vive nem sente o presente; ele arruína o presente e o futuro construídos sobre o passado que despreza.

- Na festa de Pêssach, a Festa da Libertação, eu não comemoro apenas um evento que se passou com meus antepassados, mas sim, o momento presente, como está escrito na Hagadá de Pêssach: “Se não tivesse tirado o Todo-Poderoso nossos ancestrais do Egito, seríamos nós, nossos filhos e os filhos dos nossos filhos, escravos do Faraó no Egito”. Estaríamos escravizados agora, no presente. Quando eu me inclino, na noite do Sêder à mesa festiva, celebro a liberdade de hoje, minha liberdade física e espiritual.

- Também no dia 9 de av eu não choro o Bêt Hamicdash destruído há muitos anos. Mas sim, pelo que disseram nossos sábios: “Toda a geração na qual o Templo não é reconstruído, é como se este fosse destruído nos seus dias”. Assim, eu choro a ausência do Bêt Hamicdash hoje e me educo a sentir a sua falta no presente.

- Se pesquisarmos este assunto, veremos que tudo no judaísmo que nos parece apenas uma lembrança do passado e seu cultivo, forma, na verdade, uma vida completa e cheia do presente. Um judeu cumpridor da Torá vive o presente e aproveita-o em toda a sua profundidade, enquanto que o passado e seus frutos formam parte ativa na vida presente, que é cheia do esplendor de seu significado.