A Guemará nos diz que uma pessoa que quer ser “chassid” - bondoso - que está um grau acima do “tsadic” - justo - deve cumprir tudo que está escrito na Ética dos Pais. Assim, esta seção traz a sabedoria da Mishná nos maravilhosos conceitos do Pirkê Avot.
Hu hayá omer: Im en ani li, mi li? Uchsheani leatsmi, má ani? Veim lô achshav, ematay?
“Ele (Hilel) costumava dizer: Se eu não sou por mim, quem será? E se sou por mim, o que sou? E se não agora, quando?”
“Se eu não sou por mim, quem será?”
Esta mishná está ensinando que ninguém pode confiar o seu futuro e progresso espiritual em outra pessoa ou causas, deixando de se esforçar. Cada indivíduo precisa saber que tudo depende de seu empenho e esforço. Isso é algo que deve partir da própria pessoa. Caso contrário, ninguém conseguirá ajudá-lo para que cresça espiritualmente.
O Rabênu Yoná explica esta primeira parte da mishná com um enfoque um pouco diferente. Ele diz que a mishná vem nos ensinar que a pessoa que quer melhorar e progredir precisa ter autocrítica. Isto a ajudará a desenvolver-se constantemente, independente do local ou situação em que esteja vivendo.
As pessoas que não tiverem uma autocrítica só progredirão quando criticadas por terceiros. Esta situação não é tão eficiente. Nem sempre terão um rabino ou um amigo que lhes chame a atenção, procurando o seu bem. Mesmo que vivam ou frequentem um local em que sempre haja uma pessoa à disposição para colocá-las no caminho correto, uma reprimenda que vem “de fora” dura pouco, e logo a pessoa se esfria novamente.
“Se sou por mim, o que sou?”
Nesta segunda questão, a mishná transmite a ideia de que, mesmo que a pessoa se empenhe, se esforce e tenha autocrítica, ela nunca chegará ao que deveria.
O Rabênu Yoná traz uma parábola para entendermos melhor este conceito:
“Certa vez, um rei decidiu distribuir terra para seus escravos trabalharem. Antes da distribuição, combinou com os escravos a quantidade de produção que deveriam realizar durante o ano. Os escravos trabalharam bastante, mas produziram muito menos que o combinado. Quando o rei os questionou sobre o porquê da quantidade pequena, os escravos responderam que as terras que receberam eram muito ruins e por isto não conseguiram produzir mais do que aquilo.”
O Rabênu Yoná esclarece que algo parecido acontece com o ser humano. D’us colocou em nós o Yêtser Hará, a má inclinação, que dificulta demais o nosso serviço espiritual. Mesmo nos esforçando, não conseguimos chegar onde precisaríamos...
Rabênu Yoná conclui que este trecho da mishná nos ensina que aquele que não se esforça nunca sairá do lugar. Já aquele que se esforça progredirá sim, mas não tanto quanto precisaria. O indivíduo nunca deve imaginar que já realizou tudo o que lhe cabe fazer neste mundo.
Há mais uma mensagem embutida neste trecho. Todos sabem que o egoísmo é visto como uma característica muito ruim segundo a Torá. Todas as pessoas devem pensar no bem-estar dos demais.
Entretanto, seguindo este caminho, de não sermos egoístas, poderíamos pensar que não precisamos mais nos preocupar com o nosso próprio progresso espiritual. Poderíamos imaginar que o importante é nos dedicarmos apenas para o bem-estar do próximo.
A mishná soluciona esta dúvida, ensinando que primeiramente a pessoa precisa se preocupar com seu futuro espiritual - “Se eu não sou por mim, quem será?”. Mesmo que para isto tenha que ser um “pouquinho” egoísta, pois o intuito principal do homem é o seu progresso espiritual. No entanto, a mishná continua sua ensinança: Depois que você tiver se preocupado consigo e com sua espiritualidade, não esqueça dos outros e não pense apenas em você mesmo - “Se sou (apenas) por mim, o que sou?”.
Na prática, a regra para os jovens que ainda estão estudando em yeshivot é que estão vivendo principalmente a fase de “Se eu não sou por mim, quem será?”. Devem dedicar seu tempo para se desenvolver e crescer espiritualmente. No entanto, não devem esquecer da continuação: “Se sou por mim, o que eu sou?”. Sempre que sobrar algum tempo, o jovem deve tentar ajudar os demais. Isto o ajudará a preparar-se para o futuro, quando, após ter se enriquecido espiritualmente, deverá procurar ajudar os outros.
O Rav Chayim de Volozin ensinou uma mensagem muito importante baseada nesta mishná:
Nossos sábios nos ensinaram que há uma diferença básica entre o sucesso no campo material e o sucesso no campo espiritual. Um não depende das pessoas e o outro depende.
No âmbito material, o sucesso não depende dos esforços do indivíduo. A parnassá - o sustento - é enviada e determinada para cada um diretamente por D’us. Cada pessoa deve trabalhar e fazer um esforço “normal” para obter seu sustento. O termo “normal” neste contexto refere-se ao esforço padrão das pessoas que trabalham naquele mesmo tipo de tarefa. O quanto sobrará de dinheiro no final do ano independe dos esforços de cada indivíduo.
Porém, o sucesso espiritual depende exclusivamente do empenho e do esforço do indivíduo. Quanto mais se aplicar, mais longe chegará!
Assim, o Rav Chayim explica que esta é a mensagem da nossa mishná: O trecho “Se eu não sou por mim, quem será?” refere-se ao crescimento espiritual, que depende do empenho do indivíduo. Já o trecho seguinte, “Se sou por mim, o que eu sou?”, refere-se ao sucesso material, que independe dos esforços da pessoa.
O Chafets Chayim traz uma outra explicação muito bonita sobre esta mishná. Ele diz que os dois questionamentos podem se referir ao contexto de elevação espiritual dos indivíduos.
Para esclarecer o ensinamento da mishná, ele cita a seguinte situação: Imaginemos que um sujeito é visto passeando num parque em pleno dia de trabalho. Se ele fosse questionado sobre o motivo que não está trabalhando, talvez respondesse uma desta duas justificativas:
a) Eu possuo uma empresa muito grande, mas meus gerentes conseguem tomar conta de tudo. Assim, resolvi tirar um dia de folga hoje.
b) Trabalho no comércio de diamantes. Como meu lucro é muito grande, é suficiente que eu trabalhe apenas quatro horas por dia para fechar o mês. Agora meu expediente já terminou.
O Chafets Chayim explica que, em relação ao trabalho espiritual estes dois argumentos não são válidos. O primeiro trecho da mishná - “Se eu não sou por mim, quem será?” - esclarece que a primeira resposta que o homem deu não se aplica neste caso. Não adianta que outros “trabalhem” por nós. Não adianta que outro estude Torá e cumpra as mitsvot por nós! Nós é que precisamos nos esforçar!
O trecho seguinte - “Se sou por mim, o que eu sou?” - esclarece que a segunda resposta do homem também não se aplica. Não existe um limite máximo de crescimento espiritual. Todo esforço a mais será recompensado. Mesmo que a pessoa passe a vida inteira estudando Torá e praticando mitsvot, nunca será o suficiente, pois precisa lutar contra o Yêtser Hará, que a atrapalha na tarefa de atingir todo o seu potencial.
“E se não agora, quando?”
Os comentaristas da mishná Rashi e Bartenura explicam esta frase. Cada yehudi deve aproveitar todos os minutos de vida para estudar Torá, realizar mitsvot e crescer espiritualmente, porque depois que sair deste mundo, já não poderá fazer mais nada.
O Rabênu Yoná acrescenta uma explicação importante para os jovens: “Se não agora na juventude, então quando?”. Quem pode garantir que depois a pessoa também terá esta oportunidade. O indivíduo precisa aproveitar enquanto é jovem e ainda pode dirigir sua vida para o caminho que quiser. Deve aproveitar seus anos de força e vigor para servir a D’us e estudar Torá.
Esta mensagem é essencial e muito atual para todos os jovens. Várias vezes já me aconteceu que, quando tentei convencer um jovem a vir estudar na yeshivá, ouvi a seguinte alegação: “Agora está difícil, rabino! Mas daqui a um ano eu irei”. Na maioria dos casos, quando disseram isso, não vieram. O jovem precisa saber que a vida, com o passar dos anos, vai ficando mais complicada e difícil. Portanto, deve aproveitar a oportunidade o quanto antes. Ninguém garante que ela ainda existirá no futuro.
O Yêtser Hará, a má inclinação, é quem faz isto conosco. Ele que sugere esta “alternativa”: Ir estudar daqui a um ano. Se ele dissesse para não estudarmos nada, não o escutaríamos. Então ele utiliza outra tática. Diz para deixarmos para depois, para outra hora. Assim, vamos adiando, adiando...
Existe um versículo (Tehilim 128:3) que diz: “Seus filhos são como mudas de oliveira”. Enquanto jovem, a pessoa é como a muda de uma árvore recém plantada, na qual podemos trabalhar para que cresça reta e direito. Se a árvore crescer torta, será muito difícil arrumá-la depois. O tempo para arrumar e melhorar a vida é no início, na juventude. A pessoa que é jovem deve estudar Torá e melhorar sua conduta. Depois, na velhice, é muito difícil modificar-se - “Se não agora, quando?”.
Acrescenta ainda o Rabênu Yoná, dizendo que, mesmo que lhe apareça novamente esta oportunidade no futuro, os dias que passou sem estudo nunca mais voltarão, estão perdidos. É dever de cada pessoa aproveitar todos os seus dias para crescer e elevar-se espiritualmente. Se não agora, quando você aproveitará o agora?
O Chovot Halevavot diz que a vida da pessoa é como um livro. Cada dia representa uma página em branco. Se não trabalhar duro no caminho da Torá neste mundo, chegará ao Mundo Vindouro com páginas e páginas vazias - mas aí já não poderá mais voltar para preenchê-las.
Shamay omer: Assê Toratechá keva, emor meat vaassê harbê, vehevê mecabel et col haadam bessêver panim yafot.
“Shamay disse: ‘Faça de seu estudo de Torá algo fixo; fale pouco e faça muito; e receba todas as pessoas com um semblante alegre’.”
“Faça de seu estudo de Torá algo fixo”
Esta mishná nos ensina que devemos ter uma agenda fixa de estudos de Torá: todo dia ter um shiur, uma aula de Torá, sem faltar. Uma programação constante - não algo que seja um dia sim e outro não. Este conceito é denominado de “keviut”, e é algo muito importante para o crescimento espiritual.
O Bartenura explica a mishná de outro modo. Que o estudo da Torá deve ser algo fixo no sentido de sua importância. Deve ser a atividade principal do dia, a verdadeira prioridade do indivíduo. O trabalho deve ficar num segundo plano. A pessoa deve estudar a maior parte do dia e, quando se cansar, ir trabalhar. Infelizmente, muitas pessoas fazem o oposto: trabalham a maior parte do dia e, quando se cansam, vão estudar.
O Rambam explica que o estudo de Torá deve ser a prioridade da pessoa em relação às suas preocupações diárias. Todas as decisões do dia-a-dia devem ser tomadas levando em conta o estudo de Torá. O trabalho deve ser uma preocupação secundária, a ser feito quando puder.
Analisemos um exemplo para esclarecer melhor este ensinamento: Digamos que uma pessoa está procurando uma casa para morar e oferecem-lhe diversas opções. Na hora de escolher, ela deve levar em conta a opção que mais contribuirá para o progresso de seus estudos. Neste caso, um dos fatores determinantes deveria ser a distância da casa até a sinagoga onde ela estuda, por exemplo.
Há, ainda, outra explicação para o conceito de “assê Toratechá keva - faça de sua Torá algo fixo”. A mishná recomenda que a pessoa se fixe em relação à Torá. Ou seja, para ela não ficar “em cima do muro” - quando às vezes vai para a sinagoga e outras vezes vai a lugares que não são da vontade de D’us. Isto não é bom. Assim, a mishná nos diz para nos “fixarmos” do lado da Torá.
“Fale pouco e faça muito”
A Torá incentiva o anonimato quando a pessoa fizer atos de bondade. Mesmo nos casos em que precisa falar, que fale pouco e faça muito mais.
Este é o comportamento dos tsadikim, dos justos. Aprendemos isto de nosso patriarca Avraham, que ofereceu aos três anjos para comerem um “pedaço de pão” e acabou lhes servindo um banquete completo.
O Rabênu Yoná salienta que aprendemos isto de D’us também. Quando disse a Avraham que tiraria seus descendentes do Egito, o Todo-Poderoso usou a expressão: “Dan Anochi”. Em hebraico, a palavra “dan” é escrita com apenas duas letras. Porém, quando chegou o dia em que D’us resgatou o Povo Judeu, a Torá se estendeu por 27 versículos, contando o transcorrido.
Sobre este raciocínio, o Rabênu Yoná acrescenta o seguinte em nome do Rabênu Saadya Gaon (Egito e Babilônia, 892-942): Se, quando prometeu resgatá-los, D’us utilizou-se de duas letras e fez tantos milagres, quanto mais em relação à redenção futura! Pois há vários livros grandes que comentam sobre nossa futura redenção. Portanto, quando vier o Mashiach, com certeza os fatos serão monumentais e acompanhados de muitos milagres.”
“Receba todas as pessoas com um semblante alegre”
A mishná ensina: Seja simpático e mostre um sorriso para todos.
É interessante notar que o autor desta mishná é Shamay, sobre quem a Guemará (Shabat 31a) relata ser uma pessoa impaciente, severa e objetiva. Daqui aprendemos que o sorriso é um dever que independe do estilo da pessoa.
Os mestres do Mussar ensinam que nem podemos imaginar quanto benefício podemos trazer a nossos familiares, amigos e conhecidos, abrindo-lhes um sorriso.
Às vezes, quando alguém está de mau humor ou chateado com algum problema, é-lhe difícil trabalhar ou fazer qualquer outra coisa. Ao receber um sorriso, o seu dia pode se iluminar e fazer melhorar o seu humor, dando-lhe forças para enfrentar a vida.
O Rabênu Yoná também ensina que, além de sermos simpáticos com os demais, devemos trabalhar para sermos pessoas fáceis no trato, não nos aborrecermos nunca, desculparmos todos, entendermo-nos bem com os outros e sabermos abrir mão de nossos direitos.
Nunca me esquecerei de quando ouvi o Rav Shach, já com seus 95 anos de idade, dizer em sua aula: “Já fui jovem e envelheci. Nestes quase 90 anos, nunca vi uma pessoa se prejudicar ou sair perdendo por ter aberto mão de seus direitos para os outros.”
Do livro “Mussar Avicha”.