Matérias >> Edição 159 >> Infantil

O Cadish

Shemuel era um aluno pobre que frequentava a escola de estudos de Torá na aldeia em que morava. Lá não havia uma yeshivá guedolá. Quando soube que em Fürth (Fiorda) havia uma yeshivá famosa, decidiu que iria para lá a fim de estudar.

Infantil

Quando aportou em Furth, na Alemanha, Shemuel se dirigiu sem demora para a yeshivá com o pedido de ser matriculado. O diretor da yeshivá testou seus conhecimentos e constatou que, de fato, o rapaz era dedicado e tinha muita vontade de estudar.

Assim, Shemuel foi aceito. Mas sabendo das suas parcas condições financeiras e que tampouco possuía algum parente na cidade, o diretor escreveu um bilhete ao parnás (filantropo) da cidade, no qual pedia para acrescentar o nome de Shemuel à lista de alunos com direito a uma bolsa financiada pela comunidade. O diretor entregou o bilhete a Shemuel e pediu que o levasse até a casa do parnás.

O parnás recebeu o jovem com pouca boa vontade e com uma expressão amarga. Depois de ler o bilhete, disse que a comunidade não tinha dinheiro sobrando para sustentá-lo e que ele teria que “se virar” para conseguir comida nas casas das famílias, como os outros rapazes pobres.

Envergonhado, Shemuel saiu da casa do parnás e voltou para a yeshivá. Não contou a ninguém a “grande recepção” na casa do parnás e sentou-se para estudar Torá com afinco.

Ele possuía algumas moedas no bolso, que economizara antes de chegar a Fiorda. Com elas, comprou um pouco de pão velho e seco. Depois de alguns dias pensaria no que poderia fazer.

Assim, passaram-se dois dias. No terceiro, depois de estudar o dia todo, Shemuel saiu da yeshivá em direção à padaria. No seu bolso ainda havia umas moedas suficientes para comprar mais uns pães. No caminho, uma senhora o interpelou, dizendo:

- Com licença, meu jovem. Eu não costumo esticar a mão para pedir esmola, mas meu filho está numa grande enrascada. Ele foi acusado injustamente por um crime que não cometeu e está preso. Por isso estou ajuntando dinheiro para conseguir tirá-lo de lá.

“Uma mitsvá destas não aparece todo dia!”, pensou Shemuel com seus botões. “Eu gostaria muito de ter uma parte na mitsvá de resgatar um prisioneiro.” Então, enfiou sua mão no bolso para retirar suas últimas moedas e dá-las para a pobre senhora.

Quando a mulher percebeu que eram suas últimas moedas, recusou-se a recebê-las:

- Estou vendo que você é um rapaz necessitado. Você próprio precisa de ajuda. Sou eu quem quer ter parte na mitsvá de apoiar os estudiosos da Torá!

Agora foi a vez de Shemuel recusar. Ele ficou envergonhado, não quis pegar o dinheiro da senhora e insistiu novamente para que ela aceitasse suas moedas.

Ela teimava na sua posição:

- Eu não estou lhe oferecendo um donativo - disse ela. Isso é apenas uma recompensa pelo Cadish. Hoje à noite é o yortsait (aniversário de falecimento) do meu marido, que descanse em paz. Como meu filho está preso e impossibilitado de recitar o Cadish, peço que faça isso pelo meu marido e por todos os que faleceram nesta data. Você receberá o dinheiro de forma meritória e eu terei parte nesta mitsvá!

Shemuel acabou concordando, desde que ela também aceitasse sua participação no resgate de seu filho preso. A senhora também concordou e os dois se despediram. Antes de se separarem, Shemuel perguntou o nome do marido para recitar o Cadish.

Depois da oração de Arvit, ele se dirigiu novamente à padaria. No caminho, deparou-se com um senhor de idade avançada com uma longa barba branca. Os dois se cumprimentaram e o velho iniciou uma conversa amigável com Shemuel.

- Ao que parece você é um aluno da yeshivá desta cidade. Você já conseguiu agendar em quais casas obterá sua alimentação diária? Inclusive aos shabatot?

- Para dizer a verdade - retrucou Shemuel - eu ainda não arrumei nada. Mas, graças a D’us, até o momento eu não tive problemas.

- Um rapaz como você merece estudar a Torá sem preocupações de sustento - disse o velho.

- Aliás, você merece os parabéns (chazac uvaruch) pelo lindo Cadish que recitou esta noite - continuou dizendo. - Um Cadish tão doce, que veio do fundo do coração... Fazia tempo que não ouvia nada igual.

Dizendo isto, tirou de seu bolso um bilhete e entregou-o a Shemuel.

- Este bilhete é destinado a um velho amigo meu. Por favor, entregue-o ao destinatário anotado no envelope e ele irá arranjar tudo para você.

O velho desejou boa sorte nos estudos e, antes mesmo de Shemuel agradecer, o velho desapareceu na escuridão; com se a terra o tivesse engolido.

Shemuel comprou o pão e voltou para a yeshivá. Ele tirou o bilhete do bolso e, quando leu qual era o destinatário, gelou. Era o tal do parnás. Aquele cuja recepção não fora nada calorosa e que o despachara sem solução para o seu problema. Se ele não se impressionara com a carta do rosh yeshivá, como se impressionaria com a carta de um velho desconhecido?

“Bem, por enquanto tenho pão para alguns dias e depois Hashem ajudará...” pensou o jovem.

Naquela noite Shemuel teve insônia. Somente pouco antes do amanhecer é que conseguiu adormecer.

Quando dormiu, teve um sonho, no qual viu alternadamente a senhora que o contratara para dizer Cadish, o velho que lhe entregara o bilhete e o parnás com cara de bravo. Shemuel acordou assustado, fez netilat yadáyim e recitou as bênçãos matinais. Ele estava na dúvida se deveria levar o tal bilhete ou não. Teve dificuldades em se concentrar na reza e também nos estudos. No final, decidiu ir ao parnás e terminar de uma vez com aquela história.

O parnás ficou estupefato ao ver novamente o rapaz estrangeiro. Quando Shemuel entregou o bilhete, antes mesmo de abrir, o parnás gritou:

- Novamente do rosh yeshivá?!

- Não... não... - gaguejou o jovem assustado.

O parnás leu o bilhete e ficou branco como cal.

Depois de alguns instantes ele indagou:

- Quem lhe entregou este bilhete?

Shemuel narrou seu encontro com um senhor de idade de barbas brancas e longas. Disse que ele elogiara seu Cadish e, no final, entregara-lhe o bilhete...

Quando o parnás ouviu a palavra “Cadish”, ficou extremamente emocionado. Ele lia e relia o bilhete, emudecido. Finalmente, perguntou, com voz trêmula, por quem ele havia dito o Cadish.

Shemuel contou sobre o encontro com a senhora cujo marido havia falecido e da impossibilidade de o filho recitar o Cadish. Falou também que ela o havia contratado para dizer o Cadish por seu marido e por todas as pessoas pelas quais deveria se dizer o Cadish naquele dia.

O parnás colocou as mãos na cabeça e começou a andar de um lado para o outro da sala. Subitamente, parou diante de Shemuel e perguntou:

- Você observou bem a fisionomia do velho?

- Um semblante daqueles jamais esquecerei!

Ouvindo a resposta, o parnás levou Shemuel para uma sala onde havia muitos quadros nas paredes.

- Será que você seria capaz de identificá-lo num destes quadros? - disse o homem aflito.

Shemuel apontou para um dos quadros e disse:

- Esta era a aparência do velho que falou comigo.

Ao ouvir isto, o parnás caiu numa poltrona e começou a chorar amargamente. Shemuel não estava entendendo nada.

Quando o parnás se recuperou da emoção, contou o seguinte:

- Este velho é o meu pai, que descanse em paz. Ele faleceu há dez anos. Quando você me deu seu bilhete, logo reconheci sua letra. Mas o primeiro pensamento foi que você o falsificara. Achei que tinha em minha frente um malandro. Mas logo mudei de ideia, pois você chegou há pouco na cidade e não conheceu meu pai. Quando você disse a palavra Cadish, lembrei-me que hoje é o yortsait dele, o que eu havia esquecido completamente. Ai de mim que me enfronhei nos negócios e nas bobagens deste mundo a ponto de esquecer o yortsait de meu pai!...

O parnás chorava copiosamente. Depois de um tempo, confessou como os negócios o tiraram do caminho, pouco a pouco, e que estava quase totalmente afastado da Torá.

- Você foi o emissário de Hashem para abrir meus olhos. Não sei como lhe agradecer pelo Cadish que você disse. É a primeira vez que esqueço de recitá-lo nestes dez anos. Espero que tenha sido a última vez que tal coisa aconteceu...

O parnás tirou do bolso uma grande soma de dinheiro e prometeu a Shemuel que cuidaria de todo o seu sustento enquanto estivesse na yeshivá. Pediu ainda a Shemuel que o informasse de outros alunos necessitados para poder ajudá-los também.

Daquele dia em diante, o parnás se tornou uma outra pessoa. Fez teshuvá e passou a praticar muitos atos de bondade.

Tudo pelo mérito do Cadish que o trouxe de volta...

Do “Sichot Lanôar” - editora Kehot