Depois de descrever os acontecimentos relacionados com a morte de Sará, a Torá nos conta que Avraham pediu a seu servo de confiança, Eliêzer, que fosse buscar uma mulher da casa de sua família, para casar-se com seu filho Yitschac. Avraham sabia que as mulheres do lugar onde eles estavam - Êrets Kenáan - não seriam apropriadas para seu filho. A partir de Yitschac e de sua futura esposa sairia sua descendência - Yaacov e seus filhos - que originariam o Povo de Israel.
A Torá dedica um capítulo inteiro (Bereshit, 24) para descrever o episódio da escolha da futura esposa de Yitschac. No entanto, por vezes, dedica apenas algumas palavras para outros assuntos. Isso demonstra que temos muito a aprender deste episódio.
Trazemos aqui dois detalhes na descrição dos fatos, abordados no livro Michtav Meeliyáhu de autoria do Rabino Eliyáhu Desler zt”l, os quais têm muito a nos ensinar e merecem reflexão.
Quando Avraham pediu para Eliêzer que trouxesse uma esposa para Yitschac, Eliêzer levantou a seguinte questão (Bereshit 24:5): “Ulay lô tovê haishá lalêchet acharay el haárets hazot - Talvez não queira a mulher seguir-me para esta terra”.
Mais adiante, a Torá relata que Eliêzer encontrou a mulher com as características necessárias para ser a esposa de Yitschac. Era Rivcá, e tinha sido indicada a Eliêzer pelo próprio Criador através de um sinal. Depois disso, Eliêzer relatou para a família de Rivcá sobre o pedido de Avraham e também que ele tinha levantado a questão (24:39): “Ulay lô telech haishá acharay - Talvez não me siga a mulher”. O fato curioso em tudo isto é que, da primeira vez que Eliêzer falou “ulay lô tovê haishá”, a palavra ulay está escrita com vav, e da segunda vez, a palavra ulay está escrita sem vav - apenas com cubuts embaixo do álef, indicando o “u”.
Vejamos o segundo detalhe desta descrição que abordaremos. No caminho de sua missão - trazer uma moça para Yitschac - Eliêzer rezou para D’us para obter sucesso. Ele pediu que o Todo-Poderoso lhe indicasse com um sinal (uma pista) a mulher apropriada para ele escolher. Este sinal era que ele pediria água de beber, e se a moça desse para ele beber e além disso, aos seus camelos, esta seria a mulher destinada a Yitschac. Logo que ele acabou de dizer estas palavras, apareceu Rivcá, filha de Betuel, e aconteceu justamente como ele tinha dito anteriormente. Eliêzer então lhe deu um aro e duas pulseiras de ouro como presente. Depois, perguntou-lhe quem eram seus pais (24:22-24). Entretanto, quando conversou com seu pai Betuel e contou quem era e tudo o que lhe sucedera durante sua missão, Eliêzer inverteu a ordem destes acontecimentos: disse que perguntou a Rivcá quem eram seus pais e, depois que ela respondeu, deu-lhe os presentes (24:47).
Dizem nossos sábios que um dos conceitos da yahadut é que, da mesma forma que fisicamente existem pessoas míopes que não enxergam além de uma certa distância, assim também ocorre espiritualmente. Nós possuímos um “terceiro olho”, o olho do coração, que é a sensibilidade espiritual, o desenvolvimento do intelecto ativo em relação às coisas espirituais. Cada pessoa está em um determinado nível espiritual e, em cada momento, não consegue “enxergar” além de seu limite espiritual.
Quando Eliêzer deu os valiosos presentes para Rivcá, antes mesmo de saber a que família pertencia, ele agiu com emuná (fé). Ele já estava convencido, por tudo o que tinha acontecido, de que aquela era a mulher destinada para Yitschac. Entretanto, quando foi relatar o acontecido para os perversos Betuel e Lavan - o pai e o irmão de Rivcá - sabia que eles não conseguiriam enxergar além de seu baixo nível espiritual e não entenderiam como alguém pode dar presentes tão valiosos a um “desconhecido”. Por isso, disse primeiro que perguntou de quem ela era filha e depois deu-lhe os presentes.
Avraham confiava totalmente em seu ajudante Eliêzer, tanto que deixava com ele a chave de todos os seus bens. Além disso, confiou-lhe a importante tarefa de trazer para o seu filho uma esposa. Entretanto, Eliêzer possuía uma filha solteira. Quando Avraham pediu que ele fosse procurar uma esposa para Yitschac, Eliêzer achou que esta moça poderia ser sua própria filha. Assim, a palavra ulay escrita sem vav nos demonstra que Eliêzer estava sendo parcial em sua conversa com Avraham. Sem a letra vav, esta palavra pode ser lida como “elay” - para mim (Rashi 2:39).
Resta então perguntar, segundo esta explicação, por que da primeira vez a palavra ulay está escrita com a letra vav, se Eliêzer estava sendo parcial em suas palavras. Nossos sábios explicam que Eliêzer só percebeu que tinha sido parcial em sua conversa com Avraham, depois que viu quem era a mulher destinada a Yitschac e como o Todo-Poderoso tinha conduzido os acontecimentos de forma a ele encontrar a mulher escolhida. Portanto, quando Eliêzer contou para Betuel sobre a conversa que teve com Avraham, ele já havia percebido sua imparcialidade. Nesta ocasião, então, a palavra ulay aparece sem o vav.
Os ensinamentos que aprendemos destes dois detalhes são muito profundos e devem sempre nos acompanhar. Devemos saber que não conseguimos enxergar além de nosso limite espiritual. Para ampliá-lo, é necessário dedicação no estudo da Torá. Sabendo disso, e que existem sábios da Torá com mais visão do que nós, devemos estar sempre dispostos a ouvi-los e confiar a eles a solução de nossas dúvidas.
Além disso, quando tomamos atitudes sobre nossos atos, precisamos ser imparciais, a fim de tomar a resolução correta. Este procedimento é difícil e exige de nós compenetração. É certo que, se todas as nossas atitudes fossem precedidas de uma análise racional e imparcial, sem levar em consideração os benefícios decorrentes de cada opção, elas seriam muitas vezes completamente diferentes e mais acertadas. Como exemplo deste raciocínio, basta tomar o simples fato da leitura deste texto. Se o leitor fizer apenas uma leitura como passatempo, poderá tirar algumas conclusões superficiais. No entanto, se estiver realmente interessado em fazer uma análise racional e imparcial sobre estes conceitos, com certeza enxergará o proposto sob outro ângulo, o que poderá levá-lo a tomar resoluções importantes que não tomaria de outra forma.
Quando deixamos nossos interesses pessoais de lado e tomamos decisões imparciais, visando exclusivamente seguir o melhor caminho, ampliamos nossos horizontes espirituais e subimos mais um degrau da escada que nos aproxima do Todo-Poderoso.