Matérias >> Edição 159 >> Visão Judaica II

Fé, Verdade e Gatos Pretos

Quando o trem abandonou a cidade, o jovem tomou um pequeno livro de orações de seu bolso, endireitou a kipá, concentrou-se e começou a orar. Embora seus lábios se movessem, rezava em silêncio.

O cavalheiro mais velho, que sentava à sua frente, observou-o com curiosidade. O jovem mal fechou o seu livro e o homem disse:

- Você proferiu uma oração para ter uma viagem segura, não é?

Depois da confirmação, o cavalheiro prosseguiu:

- Você vê! Eu posso não ser um judeu observante - e mostrou sua cabeça descoberta - mas de toda forma, não esqueci o que estudei quando criança. Oh, perdão por não me apresentar! Sou o doutor Ron, um educador.

- Meu nome é Rafi - disse o jovem.

- Respeito e admiro o judaísmo e os judeus observantes - prosseguiu o doutor Ron. - Levanto meu chapéu perante a fé. Na realidade, eu também tenho fé!

- Em quê? - perguntou Rafi de imediato.

- Bem, na eternidade de Israel!

Houve um instante de silêncio.

- O que você quer dizer com “a eternidade de Israel”? - perguntou Rafi.

O doutor Ron franziu a testa, com um olhar levemente carrancudo, e disse numa voz um tanto dramática:

- Significa que o povo judeu, como nação, é eterno. Seu destino é imortal. Creio em meu povo e em seu destino eterno. Isso faz parte de mim e é essa minha profunda fé.

Rafi ouviu atentamente as primeiras palavras do doutor e esperou que continuasse.

- Na realidade, isto é parte de toda a minha existência. Lembro-me de ter observado algo maravilhoso certa noite, há vários anos, no internato onde eu trabalhava. Todo o céu estava escuro. De repente, o céu se iluminou e eu vi um meteorito caindo velozmente em minha direção, até explodir bem diante dos meus olhos. Fiquei ali alguns minutos, assustado e confuso. Então olhei ao meu redor e vi o diretor da escola parado perto de mim. Sem ao menos me cumprimentar, ele me fez uma pergunta estranha: “Em que você acredita?” Lembro-me claramente que não hesitei por um minuto antes de responder: “Creio na eternidade de Israel!”

- Até aquele momento - disse o doutor - era como se eu avançasse rumo ao desconhecido. Hoje, creio na eternidade de Israel e esta fé me dá forças para viver e lutar pela vida. Sem isso, morreria.

Quando o doutor Ron terminou seu depoimento empolgado, acomodou-se novamente em seu assento.

Antes de dizer qualquer coisa, Rafi pareceu medir meticulosamente em suas palavras.

- Parece claro que sua fé é basicamente emocional.

- Naturalmente - concordou o doutor Ron. - A emoção é um dos elementos mais decisivos na experiência humana. Você não acha?

O jovem estava só parcialmente de acordo.

- Sim - consentiu. - Não há dúvida de que os sentimentos desempenham um papel na crença religiosa. Mas no judaísmo, a verdade e a fé caminham unidas. De fato, em hebraico, as palavras para verdade, “emet”, e fé, “emuná”, estão estreitamente relacionadas. Aquele que crê, antes de tudo, deve estar certo que sua crença é verdadeira. Afinal é baseado nela que ele vive.

- É claro! - interrompeu o doutor. - Toda a conduta do homem é determinada pelo mundo real, tal como é captado pelos seus sentidos e instintos. E todas as suas diretrizes de conduta devem enfrentar as provas da realidade.

- Se é assim - continuou Rafi - não compreendo como você pode saber que Israel é realmente eterno. Que lógica incontestável diria a você que nenhum outro Hitler exterminará a nação judaica? E que relação tem a experiência do meteorito com isto? Em que, na sua opinião, acreditaram os antigos moradores da Babilônia ou os cidadãos russos ao verem tal fenômeno? Em qual suposta eternidade acreditaram eles ao ver um meteorito?

Silêncio.

- Você é um educador - continuou Rafi. - Como transmitiria sua fé a seus alunos? Afinal, nem todos tiveram a oportunidade de presenciar uma estrela fugaz. Mesmo aqueles que a viram, talvez não sentiram o mesmo que você! Como você pode basear sua fé somente na emoção?

- Isso é fé! - exclamou o doutor. - Eu acredito nisso! Você não acredita na eternidade do povo judeu? Afinal, você é observante!

O jovem parecia já ter sua próxima fala na ponta da língua:

- A crença de uma pessoa determina a vida que leva e como a encara. Se sua fé for equívoca, isso significará toda uma vida jogada por água abaixo. Esta é a maior tragédia: toda uma vida em vão.

- Portanto - continuou Rafi - sua fé deve se basear em uma verdade mais elevada. Eu estou seguro da verdade da minha fé porque D’us Se revelou perante toda a nação de Israel no Monte Sinai. O conhecimento desse acontecimento histórico me chegou tanto verbalmente, através do ensino tradicional transmitido de geração a geração, como por escrito, por meio da Torá. Também posso encontrar muitas evidências da veracidade de minha fé ao observar os prodígios da natureza. Algumas pessoas adquirem este grau de certeza através do estudo intenso da Torá. Outras, por meio de um exame profundo da história judaica; em especial, comparando nossa história com as profecias da Bíblia.

Rafi fez uma pequena pausa e continuou seu raciocínio:

- Até um estudo sobre o homem e a essência de sua natureza podem conduzir a essa mesma certeza. E estes não são os únicos caminhos para conhecer a verdade. A certeza daquele que crê na veracidade de sua fé é total somente depois que a adquire através destes diferentes caminhos. Portanto, como podem os sentimentos de uma pessoa, por si só, constituir uma prova da verdade? Você pode encontrar frequentemente alguém que acredita nas mais estranhas superstições. Por exemplo, ontem falei com um engenheiro; uma pessoa racional e sensível. Ele me contou o quão contente estava por ter passado um inverno, depois de muitos anos, sem nenhum ataque de reumatismo. Sua últimas palavras foram: “Toque na madeira!”. Depois, olhou ao seu redor, procurando uma peça de madeira para tocá-la como se, magicamente, agisse sobre ele! Outro “adulto maduro” pode se sentir influenciado por gatos pretos ou ferraduras. Cada uma destas pessoas possui uma fé plena - uma fé emocional - em sua superstição, mesmo que seja completamente irracional.

- Você está comparando minha fé na eternidade de Israel com uma ferradura ou um gato preto?! - exclamou o doutor Ron, indignado.

- Você tem razão - disse Rafi, tentando acalmá-lo. - Quanto ao conteúdo, não há comparação. Você acredita em algo de fato verdadeiro. Israel é eterno. Minha comparação, porém, é com o fato de “como” você chegou a essa fé. Será que apenas os sentimentos de uma pessoa  podem constituir uma prova da verdade?

- Tomemos o seguinte exemplo - sugeriu o jovem. - Um homem está voltando para sua casa depois do trabalho. De repente, tem a sensação de que encontrará uma visita em sua casa. Na realidade, está tão seguro disto que apostaria cinco dólares. Mas arriscaria ele quinhentos dólares? Para muita gente, a “crença” consiste numa “sensação” de que algo é verdadeiro. Algumas vezes o sentimento é forte, outras, vago. Mas persiste uma sensação. Você simplesmente a tem e isso é tudo! Você acredita e “tem fé” naquilo. Isso é o que muita gente chama de fé.

- Se a fé não passa de um profundo sentimento - continuou - então não há diferença entre o observante e o que não é. Você e todos nós acreditamos em algo. Não necessitamos lógicas ou provas. Você crê em quem quiser, eu também, e todos nós respeitamos a crença, o sentimento, dos demais. Todos temos o mesmo valor e está tudo certo!

Rafi concluiu seu pensamento em um tom mais sério:

- Mas a verdade não é tão simples. A fé é a culminação de um processo que cada pessoa deve atravessar. Este processo se estende desde conhecer algo até senti-lo. Desde entender racionalmente até sentir em seu coração. A pessoa que crê deve dedicar muita reflexão, sentimento e esforço neste processo. Como consequência, ela modifica toda a sua conduta e caráter. Esta é a verdadeira fé.

- Você precisa explicar melhor esse conceito - disse o doutor, que ouvia interessado.

- Talvez com um exemplo, tudo fique mais claro - disse Rafi. - Imagine que você se encontra na cobertura de um arranha-céu. Tentam convencê-lo a não ter medo de saltar para baixo. Dizem que naquele local foi instalado um aparelho, testado com sucesso, que fará com que a descida seja tranquila. Não somente cientistas famosos, mas também amigos e parentes nos quais você confia lhe asseguram que nada de mal lhe acontecerá.

- Tente imaginar seus pensamentos nessa situação - continuou o rapaz. - Por um lado, seus olhos lhe indicam que o caminho até o chão é muito longo. Por sua experiência, você sabe que a queda lhe causaria um grande mal. Está aterrorizado e instintivamente se afasta da borda. Por outro lado, seu bom sentido lhe diz que todas aquelas pessoas sabem exatamente sobre o que estão falando. Você deve fazer um grande esforço mental até se convencer da veracidade das informações e não levar em consideração o sentimento de temor.

- Com uma pessoa observante ocorre o mesmo - disse Rafi abrindo as mãos com simplicidade. - Ela procura um certo conhecimento de seu Criador e tenta transformar esse conhecimento em um sentimento instintivo. Isto é a sua fé.

- Bem - disse o homem. - Você acha que todas as pessoas observantes pensam desta forma?

- Há pessoas que se julgam observantes, mas que na realidade são ateístas nos seus comportamentos diários. Elas não consideram D’us como um fator em suas decisões cotidianas; somente reconhecem Sua existência intelectualmente. Concordam que D’us é o Único provedor e que, após Ele definir quanto uma pessoa receberá, ninguém pode lhe retirar o estipulado. Ainda assim, essas pessoas lutam contra seus concorrentes com todos os meios a seu alcance, sejam eles lícitos ou não. A compreensão de que D’us é o provedor permanece apenas como uma ideia, porém seus comportamentos demonstram que acreditam na possibilidade de seus concorrentes prejudicarem seu sustento.

- A pessoa que crê deve sentir continuamente, não somente saber - disse Rafi. - Deve converter o seu conhecimento em parte integral de sua existência, num sentimento natural. Isso é extremamente difícil. Quem crê deve trabalhar continuamente sobre seu interior. Suas rezas e bênçãos, a forma como analisa o passado e o que espera do futuro, tudo isso desempenha um papel nesse esforço.

- Para um judeu observante, a fé é um processo dinâmico! - continuou o jovem com empolgação. - Ela faz com que ele mude e se eleve. A fé o afeta tão profundamente, que pode-se notar sua influência até em seus descendentes.

- Você mesmo, doutor, é um produto de gerações de fé - disse Rafi, apontando para seu novo amigo. - Mesmo que você tenha escolhido não cultivar esta fé, ela permanece em seu coração. Prova disso é o fato de que você não necessita explicar logicamente a sua crença. Você se satisfaz em deixá-la como um sentimento. Você é um “crente passivo”, que usufrui dos benefícios da fé de seus antepassados.

O doutor franziu as sobrancelhas, meio desconfiado. Mas Rafi continuou seu “diagnóstico”:

- Alguns jejuam em Yom Kipur, outros não comem pão em Pêssach. Há quem coma somente casher em seus lares. Todos afirmam não serem observantes. Eles, como você, herdaram certos sentimentos pelo judaísmo. Receberam um legado de fé de gerações passadas, de judeus donos de uma profunda fé. Por utilizarmos a palavra fé de forma tão vaga, as pessoas não diferenciam entre fé em amuletos e fé em princípios religiosos. Para o judeu, fé não é apenas uma espécie de sentimento, é um desafio. Implica num trabalho árduo, orienta a uma apreciação mais profunda da vida e a um nível moral mais elevado.

Como o jovem parecia ter terminado, doutor Ron sorriu compreensivamente e se dispôs a dizer algo:

- Seu ponto de vista é muito interessante. É a primeira vez que escuto tais afirmações. Para mim, é sempre uma satisfação conversar com alguém original.

- Original?! Isso não é nada original! - exclamou o jovem. - Tudo o que eu disse está evidente na Torá! Na Torá consta a seguinte passagem (Devarim 4:39): “E saberás hoje, e considerarás no teu coração que o Eterno, Ele é o D’us, em cima nos Céus e embaixo na Terra; não há outro”. Nós repetimos esse versículo três vezes ao dia para lembrarmos como deve ser a vida de quem tem fé.

- Mas mesmo repetindo diariamente a crença em D’us - propôs o doutor - a intensidade dos sentimentos varia muito de pessoa para pessoa.

- Certamente que sim! - exclamou Rafi. - Nisso nós estamos de acordo! Você poderia dizer que todos aqueles que crêem em D’us podem ser considerado como Avraham, que foi o primeiro e o maior de todos eles. Mas Avraham Avínu dedicou uma tremenda quantidade de tempo e esforço mental para transformar o seu conhecimento da existência e supremacia de D’us em um modelo de conduta. Ele chegou até o nível de poder perceber a mão de D’us mesmo nos fatos mais insignificantes - do mesmo modo que você e eu vemos a luz e ouvimos os sons. Isso de forma completamente natural e instintiva. Foi este incomparável nível de fé que o capacitou a superar os dez testes aos quais D’us o submeteu. No último deles, quando foi ordenado a sacrificar o seu filho, sua fé foi mais forte que seus sentimentos mais profundos, seu sentido comum e suas ideias de moralidade.

- Avraham adquiriu uma fé perfeita - continuou dizendo o jovem. - O mais alto nível possível. O resto de nós encontra-se em alguma parte do caminho. Agimos com distintos graus de êxito, tentando transformar o que nossas mentes entendam em algo que nossos corações sintam.

- É surpreendente - considerou o doutor. - Mas a palavra “crença” é utilizada tanto para as ridículas superstições como para o profundo aspecto da religião. Seria melhor usarmos termos diferentes para descrever coisas tão distintas!

- Concordo completamente - afirmou Rafi. - É enganoso.

- Mas voltando à sua pergunta - disse o rapaz com um sorriso - sim, eu acredito na eternidade de Israel...

- Ahá! - interrompeu doutor Ron - Eu tinha certeza que você também acreditava na eternidade do povo de Israel.

- Mas deixe-me terminar - continuou Rafi. - Tenho bases sólidas para esta minha crença. Os próprios profetas se referem a D’us como a “Eternidade de Israel”. É uma alusão ao fato de que D’us é a vida, a esperança do povo de Israel. Por exemplo, em Shemuel I (1:15-29) lemos: “A Eternidade de Israel não mentirá  nem Se arrependerá, porque Ele não é homem para que se arrependa.”

- Nossa fé na eternidade do povo judeu se origina na promessa que D’us nos fez. Tentarei encontrar o lugar preciso - acrescentou Rafi, pegando uma pequena Bíblia em hebraico de sua pasta. Folheou-a por um momento e logo disse: - Yeshayáhu 66:22: “Porque como os Céus novos e a nova Terra persistem perante Mim... assim persistirá vossa semente e seu nome permanecerá eterno.” Talvez possa encontrar mais uma passagem... aqui está: Yeshayáhu 48:19: “Sua semente será como a areia... seu nome não perecerá nem será destruído perante Mim”.

- Yeshayáhu nos dá uma informação clara - concluiu o jovem. - D’us prometeu a eternidade da nação de Israel. Nosso dever é viver de acordo com isso. Transformar essa informação em um sentimento natural. Por exemplo, quando ouvimos que dirigentes árabes ameaçam atirar Israel ao mar, quando escutamos sobre enormes embarques de armas aos inimigos de Israel, ou sobre o renascimento do movimento neonazista em todo o mundo, nossa fé, nossa certeza emocional na promessa de D’us deve se opor ao nosso temor natural pelo aniquilamento do povo judeu. Isto é a fé na prática!

O trem começou a parar. O doutor Ron levantou-se e deu a mão a Rafi.

- Desfrutei muito de nossa discussão, jovem - disse o doutor. - Foi muito interessante. Espero que voltemos a nos encontrar!

E ambos se despediram.