Matérias >> Edição 164 >> Visão Judaica II

Lembrança Constante

Yochanan David Salomon

Fazia muito tempo que não via minha tia de Afula.
Disseram-me que ela estava muito doente, sem mencionarem do que padecia. Por isso, foi grande minha alegria ao reencontrá-la numa festa de casamento.

Ao encontrar minha tia na festa, cumprimentei-a - e ao meu tio que estava a seu lado - com mazal tov. Logo depois de cumprimentá-la perguntei como estava sua saúde. Ela deu uma resposta comum e perguntou quem eu era. Não me ofendi. Pelo jeito, eu devia ter mudado minha fisionomia nos últimos tempos, desde a última vez que nos encontráramos. Também parecia que sua memória e sua visão não estavam com o melhor desempenho.

Depois que me apresentei, passou-se um minuto de silêncio. Então ela aproximou-se de mim e, apontando discretamente para o meu tio, que estava a seu lado, perguntou: “Diga-me, quem é esse sujeito?”

Assustei-me. “Tia”, disse a ela sussurrando, “esse é o seu marido Yitschac!”

Passamos a falar sobre os noivos. No meio da conversa, ela perguntou novamente: “Quem é esse sujeito?”, apontando para meu tio.

Ninguém mais precisou me dizer que minha tia estava doente e quão grave era seu quadro. Um ser humano que não consegue lembrar quem é seu cônjuge após dezenas de anos, e não lembra o que lhe foi dito há alguns minutos, pode ser comparado a... A que poderia ser comparado? Não consigo achar um paralelo. Pois, de fato, ele não é mais ele. A personalidade de uma pessoa é fruto de inúmeros componentes. O que molda e liga todos eles é a memória. A memória pode ser comparada a uma corda que amarra um monte de bastões. Sem a corda, há uma grande confusão de bastões por todos os lados.

A lembrança da pessoa sobre si próprio e tudo o que se passa à sua volta é condição “sine qua non” para uma existência normal. Sem isso a pessoa não conhece seus filhos, não lembra seu endereço e, num caso mais grave, nem lembra seu nome. A falta de memória nesse grau é uma doença muito séria.

Memória é a possibilidade de trazer à tona coisas que foram gravadas no passado. As pessoas se diferenciam nesta qualidade, que é de grande valia nos estudos. Todos invejam quem possui esse dom - uma boa memória. Uma aluna que estuda algumas vezes um texto e, na hora da prova, não consegue uma boa nota, inveja sua colega que lembra sem muito esforço toda a matéria dada em aula.

“Um poço impermeabilizado que não perde uma gota de água”. É assim que Rabi Yochanan ben Zacay definia seu aluno Rabi Eliêzer ben Hôrkenos (Avot 2:11). Realmente, é uma dádiva Divina possuir boa memória. Quanta coisa boa pode ser feita com uma memória pródiga. Quem não a aproveita deve preparar uma boa resposta para o dia do juízo final.

Até agora tratamos da memória como uma das importantíssimas características do homem. Todo indivíduo, com exceção da minha tia de Afula, é agraciado com mais ou menos poder de memória, e ele a utiliza como um bibliotecário, na gigantesca biblioteca da sua cabeça. Um bibliotecário preguiçoso despenderá mais tempo para encontrar um livro. Livros que o bibliotecário não tem acesso de nada servem. É como se não existissem. Livros assim, ou seja, partes da memória que a pessoa não alcança, estão perdidos. Não é possível utilizá-las nem tirar proveito delas. Assim, um livro importante para alguém deve ser colocado na estante num local acessível.

Nós encontramos na Torá algumas referências a respeito da memória. Por exemplo: “zachor”, “zachor velô tishcach”, “hishámer lechá ushmor nafshechá meod pen tishcach”, etc. Essas recordações que a Torá exige “lembrança”, são eventos históricos. Há aqueles que devemos lembrar uma vez por ano, como o que fez Amalec e a mitsvá de apagar seu nome. Há aqueles que lembramos diariamente, como o castigo de Miryam, que falou de seu irmão (conforme o Ramban). Há aqueles que devemos lembrar falando duas vezes ao dia, de manhã e à noite, como a saída do Egito. A finalidade desta mitsvá também é deixar algo gravado em nós, como uma marca, entre cada vez que recordamos o fato.

As lembranças são muitas. A maioria faz parte das 613 mitsvot, conforme a opinião de alguns legisladores. Vejamos alguns exemplos: a lembrança da Outorga da Torá no Monte Sinai, a lembrança do Shabat para santificá-lo, a lembrança das provocações de nosso povo contra D’us no deserto. E ainda: lembrar sempre que D’us criou todos os seres e que não há outro, aflorando o amor contínuo a Ele - o que nos liga sempre ao Criador - com toda a nossa alma e todos os nossos bens.

Quem pensa que a lista acabou está enganado. Realmente ela é grande. Vejamos apenas mais um exemplo: É uma mitsvá lembrarmos constantemente as bondades que D’us fez com nossos antepassados no passado e as bondades e favores que faz com os judeus em todos os lugares e em todos os tempos. A pessoa precisa também estar consciente das bondades que D’us faz com cada um particularmente desde o dia do seu nascimento até o presente momento. O princípio deste mandamento encontra-se na Torá (Devarim 8:2) e está enumerado entre os 613 mandamentos conforme a opinião de Rabênu Yoná. Esta mitsvá não tem um prazo estipulado e limitado. Ela obriga todo judeu, não num determinado momento, mas durante o ano todo em todo o tempo possível.

Surge uma pergunta: Será que isso é possível? Será que é praticável? Nós esquecemos coisas muito mais simples! Por exemplo: hoje foi o último dia para o pagamento de uma conta. Há dois dias que estou com isso na cabeça, para pagar hoje à tarde. E quando é que me lembrei? Somente hoje às oito da noite, quando todas as agências já fecharam suas portas! Será que a Torá deseja que uma criatura como eu carregue todo este pacote de lembranças? Todas estas lembranças não são simplesmente realizadas em alguma hora do dia e pronto! Como posso pensar nelas constantemente? Será possível pensar em dois assuntos ao mesmo tempo?

Apresentei todas estas perguntas a meu amigo, o Sr. Menachem. Descrevi minhas dúvidas e dificuldades. Parecia que ele não estava ouvindo nenhuma novidade. Após as perguntas ele começou a despejar suas respostas:

“Veja, meu caro amigo. No meu bolso direito surgiu um furo. Isto aconteceu por causa das chaves que coloco lá frequentemente. Quando descobri o furo, decidi que neste bolso não poderia mais colocar dinheiro enquanto não fosse remendado. Apesar disso, quando recebi o troco no supermercado, minha mão automaticamente enfiou as moedas no bolso direito. O que você pensa? Que não lembrei da existência do furo? O conhecimento do furo está bem aqui na minha cabeça e com certeza poderia lembrar dele. Mas este conhecimento não se transformou dentro de mim num sentimento constante a ponto de eu não usar o bolso para guardar dinheiro. Depois de dois, três dias, quando as moedas caíram algumas vezes no chão, esta lembrança tornou-se um conhecimento constante e não coloquei mais moedas no bolso.

“Um eletricista às vezes mexe com um aparelho elétrico mesmo quando está ligado na tomada. Ele está habituado com o cuidado que deve ter. Eu não digo que ele se lembre a todo instante que o aparelho está ligado, ele praticamente ‘sente’ isso. O conhecimento dele sobre o perigo de levar um choque é constante. O interessante é que este conhecimento não o atrapalha na maneira de trabalhar corretamente.

“O mesmo ocorre com quem sobe numa escada alta para consertar algo no telhado. Ele sente ininterruptamente que se encontra sobre uma escada. Chamando esta situação de “lembrança”, causamos uma pequena confusão. Não é uma lembrança como a de pagar uma conta, apesar de serem chamadas da mesma forma.

“Um funcionário de um banco contou-me que, por motivos de segurança, afixaram uma câmara de vídeo em seu local de trabalho. Por um circuito fechado todas as imagens passaram a ser transmitidas para o gerente no andar superior e para o chefe de segurança. Meu amigo relatou-me sobre a sensação desagradável de estar sendo observado a todo instante. Ele continua fazendo o mesmo que fazia até então, porém sobre todos os seus atos paira o sentimento de que alguém o está vigiando ‘de cima’.”

Depois destes exemplo, o Sr. Menachem passou a responder minhas dúvidas:

“Nossa fé completa de que D’us sabe de cada ato que fazemos e que Ele constantemente nos observa, não deve atrapalhar nosso dia-a-dia, se este for de uma conduta correta. ‘Shivíti Hashem lenegdi tamid’ - colocar D’us perante nós constantemente - não quer dizer que devamos deixar de fazer algo para dedicarmo-nos a isso. É um princípio e uma consciência que deve nos abraçar em todos os atos comuns do dia-a-dia. Isso nos traz o sentimento de que estamos fazendo tudo perante um grande Rei. Lembrar o castigo de Miryam por ter falado sobre seu irmão e cuidar da fala por isso, não está desvinculado do sentimento de estar presente perante o Rei - é decorrente disso.

“A mitsvá de lembrar que D’us é bondoso conosco não nos obriga a parar nossos negócios. Nós comemos, bebemos, trabalhamos, compramos, estudamos e conversamos. Fazemos tudo isso envolvidos pelo reconhecimento do bem constante que nos é proporcionado - pela possibilidade de estar fazendo essas coisas. Este sentimento de reconhecimento em relação a D’us se encaixa perfeitamente no conceito das outras lembranças que mencionamos.

“O amor e o temor a D’us, o reconhecimento da Providência Divina e dos benefícios que recebemos se enquadram e se completam uns aos outros. Esses conceitos auxiliam o judeu, com saúde física e espiritual, no caminho de seu aperfeiçoamento.”

Com isso, o Sr. Menachem concluiu sua explicação:

“Quem carece destes sentimentos corretos se compara à sua tia, coitada! Um sujeito sem estes sentimentos não sabe perante Quem está. Não sabe Quem está acima dele. Esqueceu de onde vem e não sabe para onde vai. Não lembra quais são suas obrigações! Isso é vida? A sua tia está doente, coitada, contra sua própria vontade. Mas nós temos a possibilidade de viver uma vida de lembranças corretas. Isto está ao alcance de cada um!”