Matérias >> Edição 164 >> Era Uma Vez III

Conversa de Anjos

Certo dia, num local distante, dois anjos se encontraram. Um dos anjos era o responsável pelos sonhos dos homens. O outro era responsável pelos sucessos.

Era Uma Vez III

Os dois anjos começaram a conversar, cada qual expondo perante o colega seus surpreendentes feitos.

O anjo dos sucessos contou sobre um pobre coitado que, num instante, foi tirado da miséria para a realeza. O anjo dos sonhos, por sua vez, relatou sobre um longo e bem-sucedido sonho que produzira para um homem.

Depois de uma longa conversa, os dois se despediram, combinando reencontrarem-se no dia seguinte para, novamente, comentarem suas façanhas.

Mal haviam se despedido e o anjo dos sonhos decidiu usar todo seu poder - naquela mesma noite - para proporcionar um sonho jamais visto.

Há muito tempo que os amigos do Sr. Henry não o viam tão sério. Já fazia um bom tempo que ele não estava satisfeito com o que se passava na filial de sua empresa em Nova Iorque. Mas agora, à luz das últimas informações, constatando os dados e os gráficos nos relatórios, ele entendeu que seu pressentimento não era infundado.

Durante toda sua vida, o Sr. Henry acreditou que o sucesso da pessoa dependia exclusivamente dela mesma. Sua máxima preferida, que repetia frequentemente aos seus funcionários era: “Se você se esforçar, certamente obterá sucesso”. Na sua escrivaninha havia uma placa, na qual se lia: “O segredo de caminhar sobre as águas está no conhecimento de onde repousam as pedras.” Cada funcionário recém admitido era convidado a ler esta placa sobre a mesa do chefe. Dando um tapinha amigável no ombro do funcionário, ele dizia: “Se olhares e pesares teus atos, obterás sucesso. Não existe outra possibilidade.”

Mas, agora, parecia-lhe existir outra possibilidade....

Os negócios do Sr. Henry estavam decaindo dia a dia e ele já não sabia mais o que fazer. Ele sempre fora uma pessoa honrada. Há poucos meses ele mudara sua máxima preferida para: “Não é o sucesso que torna a pessoa honrada, mas sim o seu próprio comportamento” - simpático.

- Nossos filhos e os vizinhos não saberão de nada! - assim combinou o Sr. Henry com sua esposa.

Tentaram manter as aparências, mas a qualidade da alimentação em sua casa foi decaindo. As crianças, acostumadas com restaurantes finos, tinham que se contentar com um pedaço de pão e meio copo de iogurte. Roupas novas, nem em sonho.

Após alguns meses de aparências, chegaram ao auge da crise: seus filhos foram dormir de barriga vazia. Não havia qualquer comida em casa!

Foi naquela noite que o anjo dos sonhos conversara com seu colega. E o Sr. Henry foi o escolhido para estrelar sua maior façanha.

As luzes da casa se apagaram e todos foram dormir. Antes de adormecer, o Sr. Henry começou a relembrar cenas de sua infância. Tanto mais ele tentava esquecê-las, mais elas se tornavam claras. Seu sangue fervia, como se os episódios estivessem acontecendo naquele exato momento. Lá estava ele: um jovem magro, suado da cabeça aos pés embaixo de um sol escaldante, batendo pregos em mais um caixote que corria na esteira automática.

Um silêncio absoluto pairava na casa e o Sr. Henry continuou a tecer seus pensamentos num sonho doce. Eis os dias nos quais conseguira fundar suas filiais e aplicar seu dinheiro em investimentos rendosos. Rapidamente esta época passou perante seus olhos. Chegaram os dias em que sua firma decaiu até chegar à bancarrota. Seus filhos quase não comiam, enquanto a família tentava manter a mesma aparência de ostentações para os amigos e vizinhos. Mas essas dificuldades não duraram muito tempo. Pouco depois, um amigo de infância, que ele não via há muito tempo, propôs-lhe participar de um investimento num negócio que estava florescendo. Os lucros foram enormes, cobriram todas as dívidas e ainda sobrou uma quantia razoável para servir de base para aplicações financeiras.

Dormindo como um bebê, um sorriso largo iluminou o rosto do Sr. Henry que, acordado, já não sorria há vários meses. Como agradecimento a D’us pelo acontecido, ele convidou um grupo de amigos e um rabino respeitado para uma refeição de graças que realizou em sua casa.

Mesas bem postas por uma equipe de garçons engravatados recepcionavam os convivas. O dono da casa recebia os convidados segurando uma bandeja com copinhos de lechayim. Em sua face resplandecia uma imensa alegria.

Os convidados sentaram em volta das mesas e o Sr. Henry subiu num pequeno patamar, preparando-se para o discurso de recepção. Decidiu que o mais adequado seria iniciar com louvores e cânticos ao Criador, que o salvara da situação calamitosa.

O Sr. Henry balançava sua mão direita, enquanto de sua boca fluíam as palavras de consolo do profeta Yirmeyáhu: “A bondade de Hashem não tem fim, pois Sua piedade não findou.” Todos bateram palmas empolgados, estremecendo as paredes da casa.

De repente, o Sr. Henry empalideceu. Pela janela da sala ele viu uma arma apontada em sua direção. A arma estava na mão de um bandido conhecido, cujas fotos tinham sido divulgadas pelo governo.

Mesmo dormindo, gritos de socorro explodiram da garganta embargada do homem, quebrando o silêncio da noite. Os vizinhos, assustados, invadiram a casa, segurando paus e cabos de vassouras.

A cena era patética. O Sr. Henry estava de pé no meio da sala escura. Seus vizinhos fitavam-no, constrangidos, de dentro de seus pijamas. Seus pequenos filhos, que também acordaram repentinamente, soluçavam com barrigas vazias ao seu lado.

O soluçar de seus filhos trouxe-o de volta à realidade. “Crianças não se envergonham” também era uma de suas frases preferidas. “Sinta-se como uma criança”, dizia ele para um funcionário envergonhado. “Dirija-se confiante ao comprador, aperte sua mão com naturalidade e inicie uma conversa sobre qualquer trivialidade. Qual o problema? Tente?”

E, de fato, crianças não se envergonham. Os seus filhos famintos exigiam, lamuriando na frente de todos os presentes, algo para encher suas pobres barrigas vazias:

- Papai, comida! Estamos com fome!

Durante um longo período o Sr. Henry ficou se beliscando, para tentar descobrir quando terminara o sonho e começara a triste realidade.

Os vizinhos foram até a cozinha procurar algo para dar às pobres crianças, mas encontraram uma geladeira vazia de alimentos e repleta de contas a pagar. Descobriram então a triste realidade da família.

Finalmente, alguns vizinhos piedosos trouxeram alimentos de suas casas. Fizeram a mesa e prepararam um jantar para as pobres crianças.

Aos poucos, todos foram se retirando, encarando com dó o Sr. Henry e seus familiares.

Ao amanhecer, a notícia se espalhou: o Sr. Henry perdera tudo e, provavelmente, também um pouco do seu juízo.

No dia seguinte, novamente os anjos se encontraram. O anjo dos sonhos não continha sua satisfação, enquanto relatava para o colega sua proeza. Animadíssimo, contava como o Sr. Henry, estupefato, ficou em pé na sala, vermelho de vergonha, enquanto os vizinhos bisbilhotavam a geladeira à procura de algum alimento para seus filhos.

Os olhos do anjo dos sucessos se arregalaram:

- Você não tem vergonha?! - exclamou ele. - Isso é de uma crueldade terrível! Além de envergonhá-lo perante todos, você semeou ilusões vãs! O despertar delas é amargo e duro! Como você pôde fazer algo tão baixo?

Indignado com as acusações, o anjo dos sonhos respondeu em tom mais áspero ainda:

- Pois vejam quem quer dar lições sobre ilusões vãs! Você, meu caro colega, anjo dos sucessos, engana as pessoas durante setenta, oitenta anos! Você escolhe um sujeito, dá a ele riqueza e sucesso. Com isso, faz com que ele pense que já possui tudo, que nada lhe falta. Então, no ápice do sucesso ele não tem tempo para frequentar as aulas de Torá, não tem tempo para ninguém. Ele está sempre muito ocupado. Então, quando “as cortinas descem e o espetáculo termina”, o yehudi sobe perante o Tribunal Celestial e descobre que tudo não passou de um grande sonho. Lá ele não encontra sua riqueza, nem sucesso ou honrarias. Nada! Pobre miserável...

- Diga-me então, caro colega - perguntou ironicamente o anjo dos sonhos - quem de nós é mais cruel? Eu, que em uma noite enganei uma pessoa, ou você, que durante toda a vida as engana?

O anjo dos sucessos abaixou seus olhos e partiu sem mesmo se despedir.

*   *   *

Esta estória foi contada pelo Rabino Chayim David Kovalski Shelita. Provavelmente ela nunca aconteceu, mas sua lição de moral é muito forte. Nós devemos saber qual é nosso verdadeiro objetivo na vida - como alcançaremos o sucesso verdadeiro e eterno. Precisamos aproveitar cada dia que nos é confiado neste mundo. Não deixar nenhum deles passar em branco sem o estudo da Torá. Um dia sem Torá é um dia arrancado do calendário. Enquanto um dia com Torá é anotado com letras de ouro no Livro da Vida.

Adaptado do Meorot Hadaf