Matérias >> Edição 167 >> Visão Judaica

A Inveja

Rabino I. Dichi

O que faltava a Côrach? O que o conduziu à rebelião que lhe custou a vida?

Depois da rebeldia do povo descrita pela Torá nas parashiyot Behaalotechá (quando o povo reclamou por carne) e Shelach Lechá (o episódio dos espiões), a Torá descreve a rebelião de Côrach.

Côrach e outras 250 pessoas resolveram rebelar-se contra Moshê Rabênu. A principal queixa de Côrach contra Moshê era o fato de Aharon ter sido designado como cohen gadol, e seu primo, Elitsafan ben Uziel, como nassi (presidente) da família de Kehat.

Vejamos no que era baseada esta reclamação:

Levi, filho de Yaacov, teve três filhos, que formaram as famílias de sua tribo: Guereshon, Kehat e Merari. Kehat teve quatro filhos: Amram, Yitschar, Chevron e Uziel. Côrach alegava que ele deveria ser o nassi da família de Kehat, e não Elitsafan, pois o pai de Côrach, Yitschar, era o segundo filho mais velho (o primogênito era o pai de Moshê). No entanto, o escolhido para ser nassi foi seu primo Elitsafan, filho do quarto e mais novo filho. Não concordando com esta posição de Moshê, resolveu discordar dele em tudo que dizia respeito à direção do povo. Côrach esqueceu-se, entretanto, de que as atitudes de Moshê - inclusive a designação destes cargos - eram ordens diretas do Todo-Poderoso.

Quando estudamos a Parashat Côrach, parece-nos que os atos de Côrach estão totalmente distantes de nossa realidade, que não nos atingem. Porém, depois de nos aprofundarmos, aprendemos de tudo isto que (Mishlê 19:21): “Rabot machashavot belev ish, vaatsat Hashem hi tacum - Muitos são os pensamentos no coração do homem, porém o que prevalece é a ideia de D’us”. Este versículoestabelece um conceito básico na fé judaica. É um ponto primordial no que diz respeito ao status no qual nos encontramos - apesar de muitas vezes pensarmos que o atingimos por nossas próprias forças.

Todos procuram aprimorar sua situação e concretizar seus desejos, porém esquecem-se de que seus anseios não o ajudarão. De qualquer forma, a vontade de D’us é a que se concretiza. É fundamental acreditar no versículo (Divrê Hayamim I - 29:11): “Lechá Hashem hamamlachá vehamitsnassê lechol lerosh - A D’us pertence o reinado e eleva-Se acima de todos”.

Côrach tentou, de várias formas, atingir o alto cargo que ambicionava, porém de nada adiantou. Não era esta a vontade do Todo-Poderoso.

Côrach era um homem inteligente, possuidor de muitos bens materiais e de prestígio entre o povo. Os demais que o acompanharam também eram pessoas importantes daquela geração. O mais intrigante de todo o episódio é entender o fato de como todos eles acreditavam que suas ideias iam concretizar-se e que poderiam afastar Moshê e Aharon de sua funções. Eles realmente acreditavam nisso, pois chegaram ao ponto de exporem-se a um teste que lhes custaria a vida caso estivessem errados.

Por acaso esqueceram-se da Outorga da Torá presenciada por todos, na qual o Todo-Poderoso aclamou Moshê e Aharon como os líderes que fariam a Sua vontade? O que faltava a Côrach? O que o conduziu a esta situação que lhe custou a vida, morrendo de forma tão trágica? Não encontrou outra pessoa para provocar a não ser o profeta escolhido pelo Todo-Poderoso, o homem que trouxe a Torá dos Céus para o Povo de Israel?

Sobre essas questões, nossos sábios chegaram à conclusão de que a inveja foi a causadora dessa tragédia.

A força dos vícios tem o poder de cegar as pessoas, a ponto de deixá-las sem enxergar até mesmo o que antes era claro e óbvio. No Pirkê Avot (cap. 4) nossos sábios dizem: “Hakin’á vehataavá vehacavod motsiim et haadam min haolam” - A inveja, o desejo material e a ambição pela honra tiram o ser humano do mundo. Ao comentar esta passagem, o Rambam nos diz que com estes vícios - até mesmo com um deles - perde-se a fé na Torá forçosamente e não se consegue alcançar níveis espirituais mais elevados.

Rambam nos diz também (Hilchot Teshuvá cap. 7 par. 3), que não devemos pensar que a teshuvá (o retorno ao caminho correto) só deve ser feita sobre os pecados ativos como o roubo. Também devemos nos preocupar e fazer teshuvá por nossas más qualidades, como o nervosismo, o ódio, a inveja, a falta de seriedade, a corrida atrás do dinheiro e do respeito, a gula, etc. Rambam completa dizendo que abandonar um destes vícios é mais difícil do que deixar os outros atos errados.

Um de nossos grandes chachamim, o Rabênu Bachyê (em seu livro sobre a Torá, em parashat Côrach), escreve que a inveja é um vício que não tem cura. Da mesma forma que existem as doenças físicas, existem também as doenças espirituais - são os vícios e as más qualidades. Estes vícios devem ser tratados pelo ser humano e devem preocupá-lo da mesma maneira que as doenças do corpo.

Vimos, portanto, que um homem que possuía tudo em sua vida e que deveria estar feliz, satisfeito e tranquilo, foi levado pela inveja. A inveja conseguiu fazer com que ele perdesse a cabeça, a ponto de chegar ao extremo de provocar nada mais nada menos que um homem do nível de Moshê Rabênu.