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Hagadá de Pêssach: Tesouro da Psicologia Infantil

Examinando a Hagadá de Pêssach e tendo em mente que é a obra principal sobre o Êxodo do Egito, ficamos surpresos. Onde estão todas as histórias da Saída do Egito, os grandes milagres?

Comemorando III

A Hagadá não detalha os milagres ocorridos no Êxodo do Egito. Somente denomina quais foram as pragas e depois numera o total de pragas que os egípcios receberam no Egito e no mar, porém não relata os acontecimentos!

O mesmo acontece em relação a quase todos os eventos relacionados ao Êxodo, como por exemplo as discussões entre Moshê Rabênu e o Faraó, o episódio do bastão de Aharon Hacohen, a procura do caixão de Yossef e assim por diante.

Para entender esta “omissão”, precisamos analisar melhor a mitsvá de contar sobre o Êxodo do Egito. A Torá nos ordena (Shemot 13:8) “Vehigadtá levinchá” (e contarás a teu filho). Ou seja, a mitsvá é relevante principalmente aos filhos. Por que a Torá deu tanta ênfase ao Êxodo do Egito, mais do que a outros eventos acontecidos ao Povo de Israel? Apesar de comemorarmos o evento da entrega da Torá em Shavuot, o que certamente é muito importante, não fomos ordenados a contar o fato aos nossos filhos nesta noite.

Respondemos tomando por base as palavras do Ramban (fim de Parashat Bô), do Sêfer Hachinuch (mitsvá 21), Sêfer Hacuzari (Maamar 1) e Sêfer Haicarim. Em todas as gerações, D’us prefere se ocultar atrás dos véus da natureza. Se Ele fizesse milagres sempre, não existiria o livre arbítrio. As pessoas cumpririam as mitsvot por força das circunstâncias e não por vontade própria.

Por outro lado, se em toda a existência do povo judeu D’us não se revelasse nunca (com milagres), poderiam colocar em dúvida, chás veshalom, a Sua existência. Assim sendo, uma vez D’us mudou completamente as leis da natureza: o rio Nilo se transformou em sangue, a terra do Egito foi coberta de sapos e assim por diante. É óbvio que quem tem o poder de anular todas as leis da natureza é o Seu Criador.

Contudo, para que esta revelação tivesse o valor de “prova concreta” da existência de D’us em todas as gerações seguintes, ou seja, aquelas que não apreciaram com seus próprios olhos todos os milagres, a Torá ordenou para todos os seiscentos mil judeus que saíram do Egito, que testemunhassem para seus filhos todo o evento do Êxodo. Todas as gerações foram, assim, ordenadas sucessivamente a passar este testemunho de pai para filho. Desta forma, aqueles milagres adquiriram a força de “prova concreta”. Certamente, seiscentos mil pais não prestariam falso testemunho para seus filhos. Por isso, a história do Êxodo é o alicerce da fé judaica, a base sobre a qual se sustenta a crença na existência do Criador yitbarach Shemô.

Entendemos, assim, a vital necessidade de relatar para nossas crianças o Êxodo do Egito. Esta é a semente da qual florescerá todo o judaísmo da criança, sendo a fé a base do cumprimento das mitsvot.

Quanto mais uma criança (ou até um adulto) tenha enraizada em seu coração a história do Êxodo, mais se fortificará na fé judaica. Para tanto, exige-nos a Mishná (Pessachim 116b): “Em toda geração e geração o indivíduo tem a obrigação de ver a si como se ele mesmo tivesse saído do Egito”. É necessário “viver” a saída do Egito e sentir-se como um dos observadores de todas as maravilhas que ocorreram na época, de forma que a fé penetre nas profundezas do coração.

A mitsvá de contar aos filhos sobre a saída do Egito não é uma tarefa simples. Não basta descrever fatos como numa aula de história, num texto unificado. É necessário fazer a criança compreender, sentir e viver este acontecimento. É um erro pensar que a Hagadá é um livro de relatos da História para a noite de Pêssach, pois um texto único não serve para todos os tipos de criança. Cada criança é um mundo particular, com sua idade, características, talentos e aptidões próprias. Não é possível que todas as crianças se emocionem e levem no seu coração a marca e a sensação de sair do Egito com o emprego das mesmas palavras.

O objetivo da Hagadá é servir como um guia para os progenitores sobre como melhor relatar o Êxodo. Mas este relato deve ser diversificado de acordo com cada filho. Para isso, deve-se levar em consideração:

a) A natureza e as características de cada filho.

b) De que forma se expressar com cada tipo de filho.

c) Quais as melhores técnicas para fazer a história penetrar no coração das crianças, tanto de forma geral como particular.

d) Quais os pontos principais nos quais o narrador deve acrescentar fatos para melhor dramatização.

Trazemos, a seguir, alguns exemplos, apenas gotas no mar, do tesouro de sabedoria sobre a psicologia infantil contido na Hagadá.

“Cadesh, urchats, carpás yacháts...”. Antes de iniciar o Sêder de Pêssach, costuma-se anunciar os tópicos da noite do Sêder. Qual é o objetivo deste anúncio? Por que é colocada antecipadamente uma bandeja com todos os elementos necessários (maror, carpás, charôsset...) para o Sêder? Por que estes elementos não são trazidos aos poucos, conforme a sua necessidade?

A resposta é um conceito importante na psicologia moderna. Crianças, principalmente as mais novas, sentem-se mais confortáveis e abertas a receber informações novas quando se deparam antes com parte da informação. Livros infantis para crianças pequenas, bem estruturados psicologicamente, recapitulam informações da página anterior antes de acrescentar novas informações. O desafio da nova informação é mais fácil para a criança, quando ela percebe que parte do novo contexto é familiar e conhecido. Por isto antecipamos todos os tópicos e expomos os elementos sobre os quais falaremos à criança no decorrer do Sêder.

“Há lachmá anyá - Este é o pão da pobreza”. O pai levanta a matsá aos olhos de seus filhos e explica que “este é o pão da pobreza que comeram nossos antepassados na terra do Egito”. A técnica audiovisual é usada há 3317 anos na hora do Sêder. Não contamos a história apenas com palavras, mas mostramos também elementos com os quais é possível materializar o Êxodo aos olhos da criança. Aprendemos este conceito em Shemot (12:8): “E contarás para o teu filho naquele dia dizendo: Por causa disto D’us fez para mim o Êxodo do Egito”. Baseada neste versículo, a Hagadá nos explica que, o dia em que fomos ordenados a contar sobre o Êxodo é o mesmo dia no qual fomos ordenados a comer matsá e maror (15 de nissan), pois a saída do Egito deve ser contada enquanto se mostra e se aponta a matsá e o maror. A palavra “zê - disto” transmite este conceito de indicar (vide Mechilta fim de Parashá Bô, que é a fonte da Hagadá).

Na continuação do Sêder (vide Mishná Pessachim fim da pág. 116a), seguramos a matsá e explicamos: “Esta matsá que comemos, por que a comemos? Em lembrança ao fato de que não deu tempo de fermentar a massa quando saímos...”. O mesmo é feito com o maror, quando o seguramos e explicamos que ele é em lembrança da amargura dos serviços forçados realizados por nossos antepassados. O próprio fato de comermos matsá, maror (amargo) e charôsset (cuja aparência lembra o barro com o qual trabalharam nossos antepassados) também é parte da tentativa de concretizar e dramatizar a história do Êxodo.

Ainda faz parte da “encenação” realizada para as crianças, o fato de comermos reclinados e utilizando a louça mais bonita, para mostrar que agora somos livres.

Tendo em base o método audiovisual, foram acrescentados diversos costumes durante o Sêder. Um deles é o costume sírio de colocar uma “trouxa” com matsá no ombro. Há também um costume marroquino de vestir um roupão especial e segurar um bastão. Conta-se que o Rabino Yisrael Meir Hacohen z”tl (o Chafets Chayim, autor da Mishná Berurá) passava entre dois bancos de madeira para demonstrar a cena da partição das águas do Mar Vermelho.

“Col Dichfin Yetê Veyechol”. Imediatamente após o pronunciamento do trecho “Este É o Pão da Pobreza”, convidamos todos os necessitados a juntarem-se à nossa refeição. Por que este convite não foi feito antes do Kidush? Aqui encontramos outro importante ensinamento oculto. Não é possível inserir nos corações das crianças um conceito ou uma lição de moral enquanto os pais não agirem como exemplo vivo. Quando um pai recita “Este É o Pão da Pobreza” deve mostrar que realmente sente pena pelo passado sofrido dos judeus no Egito. Então, deve tomar a decisão de pelo menos amenizar o sofrimento dos judeus desprivilegiados de hoje em dia.

Mesmo que o pai pretendesse convidar os menos afortunados antes do Kidush, deve fazê-lo somente após a recitação de “Este É o Pão da Pobreza”. Desta forma as crianças perceberão o quanto as palavras pronunciadas por seu pai são ditas com sentimentos profundos e verdadeiros. Obviamente, se um necessitado aceitar o convite, devemos novamente trazer o vinho para que ele recite o Kidush.

“ Má Nishtaná”. A criança recita as perguntas relacionadas com o Sêder. Várias etapas do Sêder têm o objetivo de estimular perguntas, tais como o carpás e a retirada da bandeja. Nossos sábios entendem que se tão somente discursamos sobre o Êxodo, não obtemos os resultados necessários. Devemos motivar a criança a perguntar. Se a curiosidade da criança for despertada, ela tem mais vontade de prestar atenção à resposta e, com certeza, a história penetrará mais no seu coração.

“Avadim Hayínu Lefar’ô”. A Mishná (Pessachim 116) determina que devemos obrigatoriamente começar a história com fatos tristes e terminar com a parte feliz. Na Guemará existem duas opiniões sobre qual é o episódio com o qual devemos iniciar os relatos. Shemuel opina que deve-se iniciar com “avadim hayínu Lefar’ô - fomos escravos para o Faraó”. Rav diz que a história deve ser iniciada contando-se o fato de que os pais de Avraham Avínu eram idólatras - “mitechilá ovedê avodá zará hayu avotênu”. Na Hagadá contamos ambas as histórias. Por que devemos começar por assuntos tristes? Por que não começamos, por exemplo, com o fato de que Yossef era o vice-rei do Egito e trouxe Yaacov e seus irmãos com grande honra? Nossos sábios nos ensinam que, para obter a plena atenção das crianças, é necessário dramatizar a história. Um começo tenso desperta na criança a curiosidade de escutar o desenvolvimento dos eventos.

“Kenêgued Arbaá Banim Diberá Torá”. O sentido desta frase é o seguinte: a Torá prevê que existem basicamente quatro categorias de filhos, e para cada uma destas categorias ensina métodos diferentes de como relatar o Êxodo. No entanto, a tradução literal da palavra “kenêgued” é “contra”; ou seja, os pais devem estar conscientes de que relatar sobre o Êxodo não é somente um discurso, mas sim um desafio. Cada filho tem suas restrições em sentir e “viver” o Êxodo. O condutor do Sêder é que precisa, com sabedoria, ultrapassar estas restrições.

O aficoman. Algumas comunidades costumam fazer uma “brincadeira” com as crianças. No começo do Sêder, depois de “Yachats”, a criança pega o pedaço de matsá denominada “aficoman” e esconde-o. No fim do Sêder, no momento em que se deve comê-lo, o pai procura o aficoman que foi escondido. Se (propositadamente) o pai não o encontra, promete (beli nêder) que vai dar um presente para o filho se ele revelar o esconderijo.

O motivo conhecido deste costume é causar que as crianças fiquem acordadas até o final do Sêder.

Analisando mais a fundo, perceberemos que neste costume se oculta uma importante técnica de psicologia. Começando o Sêder com uma brincadeira, introduzimos na criança a ideia de que o Sêder é um procedimento prazeroso e não uma reunião de adultos. Assim, a criança estará mais aberta a prestar atenção nas histórias e no procedimento do Sêder, pois assimilou a ideia de que o Sêder de Pêssach é direcionado a ela. No fim do Sêder, voltamos a “brincar”, presenteando a criança, que vai dormir com o “gostinho” de que o Sêder foi muito especial, o que ficará registrado na sua memória. Desta forma ela sentirá uma forte ligação e muito carinho pelas histórias do Êxodo, como se ela realmente estivesse lá.

R. Elie Bahbout, autor dos livros
“Siftê Shoshanim” e “Lilcot Shoshanim”.
Colel Bircat Avraham, Jerusalém -
centro de estudos para a preparação
de juízes rabínicos.