Os doentes de alma
Neste capítulo, o Rambam quer demonstrar que, assim como há doenças físicas, há também doenças espirituais. Estas são os vícios e as más características (talvez muito piores do que as físicas, que em muitos casos podem ser curadas de forma imediata).
Um indivíduo doente fisicamente, ao experimentar algo amargo acha que é doce e algo doce lhe parece amargo. O paladar dele é diferente do indivíduo são. Há pessoas doentes que por conta de seu paladar alterado, desejam comer coisas não comestíveis. Dependendo da gravidade da doença, o enfermo pode estar invertendo os valores.
As pessoas doentes de caráter, de midot, acham que seu temperamento é correto e que seu comportamento está adequado. Além disso, odeiam o bom caminho e têm preguiça de percorrê-lo. Dependendo do estágio da doença, isso é extremamente difícil mesmo para eles.
Ao definir este conceito, o profeta Yesha’yáhu (5:20) diz: “Coitados daqueles que falam que o mal é o bem e o bem é o mal”. Consideram o escuro como sendo a luz e a luz, a escuridão; o amargo como sendo doce e o doce, amargo. Sobre esse tipo de mentalidade, diz o Rambam, aplica-se o que está escrito: “Largaram o caminho correto, para trilhar pelo escuro” (Mishlê 2:13).
E qual a cura para os doentes de alma? O Rambam responde: “Que procurem os nossos sábios, que são os médicos da alma”. Eles curarão seus maus temperamentos, ensinando-lhes as características positivas, até que essas pessoas sigam pelo caminho correto, pois nossos sábios conhecem as nuanças da alma humana.
Sobre os que sabem que têm caráter difícil e más características e, mesmo assim, não procuram ajuda dos nossos chachamim - nossos médicos das almas - para serem curados, Shelomô Hamêlech disse (Mishlê 1:7): “A chochmá (sabedoria) e o mussar (ética) - os tolos desprezam”.
A cura para as midot indesejáveis
E o Rambam indaga: “Qual é a cura para quem padece dessas doenças espirituais?”. Por exemplo, aquele que se encoleriza constantemente é chamado de báal chemá, pois carrega consigo essa característica (raiva). Obviamente, esse vício tem cura, afirma o Rambam.
Para livrar-se dessa característica indesejada, é preciso “treino”. Caso seja insultado ou venha a ser agredido fisicamente, deverá reagir como se não tivesse passado por essa situação, ou seja, como se não tivesse sido insultado ou agredido. Se seguir por esse caminho por muito tempo, aprenderá a domar sua raiva. A tal ponto, que perceberá que a raiva não é mais parte integrante de sua personalidade.
Em outras palavras, o que se pede de alguém constantemente encolerizado é que ele se torne, de certa forma, insensível a insultos (físicos ou verbais), bem como a outras situações que despertem essa sua característica.
Esse é o remédio e, na maioria desses casos, deve ser “administrado” durante muito tempo. Assim, o indivíduo deve treinar o autocontrole por um longo período, para que o “tratamento” surta efeito.
Em relação ao orgulhoso, diz o Rambam, que ele não procure o prestígio. Por exemplo: se participar de alguma reunião com membros de sua comunidade, que se sente em lugares mais distantes, e não entre os mais importantes, para que não se coloque em evidência, à procura de cavod (honra). Nesses casos, também é preciso tomar cuidado com a vestimenta, para que ela não indique qualquer traço de ostentação, já que essa pessoa, ao estar bem vestida, poderá vir a se olhar no espelho e ter o sentimento de que é muito importante, despertando, assim, seu orgulho.
Diz o Rambam: “Eu lhe trouxe dois exemplos: do furioso e do orgulhoso. Mas, em todas as características, caso a pessoa perceba que tende para o extremo negativo delas, é necessário que se dirija em direção ao outro extremo para que, com o tempo, encontre o caminho do meio, o equilíbrio”.
Mais um exemplo: suponhamos que alguém seja extremamente avarento. Em uma autoanálise, o sujeito, que quer melhorar suas midot e seguir pelos caminhos de Hashem, detecta esse vício. Durante algum tempo, ele deverá se obrigar a dar tsedaká. Ao perceber que já se acostumou a isso, o correto é que encontre o equilíbrio (o caminho do meio), pois, do mesmo modo que não é certo ser avarento, também não o é ser esbanjador.
Portanto, para refinar as midot, é preciso perseguir o outro extremo das características negativas, passar um tempo nessa situação e, depois, encontrar o caminho do meio.
Drogas, fumo e álcool
Exceções a encontrar o caminho do meio, são as drogas e o tabagismo, proibidos pela Torá, dos quais as pessoas devem se afastar completamente. Com relação a bebidas alcoólicas, há um limite de ingestão estipulado pelos nossos chachamim.
Drogas
As drogas são nocivas à saúde, pois afetam o funcionamento dos órgãos vitais causando lesões nos rins, no fígado, no coração, no cérebro, etc., podendo levar à morte. Causam dependência química e psicológica, levando a um estado de intoxicação periódica ou crônica. Destroem neurônios, modificam as funções e sensações, causando mudanças para o resto da vida. Alteram as atividades psíquicas, o humor, o comportamento e desenvolvem doenças psiquiátricas. Dificultam a capacidade de pensar, a concentração, o raciocínio, o bom senso e levam à perda da inteligência, tiram o poder de decisão, capacidade de análise e solução de problemas.
A droga, portanto, é prejudicial ao indivíduo e à sociedade. E o usuário de drogas causa um grande sofrimento aos pais, transgredindo a mitsvá de honrar o pai e a mãe e vários outros princípios da Torá.
É indiscutível a proibição do tráfico de drogas que é crime em todos os países. Quem o pratica coloca-se em perigo, a si e à toda a sociedade.
Fumo
Uma vez que a medicina constatou de forma indiscutível que qualquer forma de consumo de tabaco é prejudicial à saúde - e a Torá nos ordena zelar por ela - fumar cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos, narguilé, etc., é terminantemente proibido.
Bebidas alcoólicas
Com relação a bebidas alcoólicas há um limite de ingestão. O indivíduo que sabe que não conseguirá beber moderadamente, podendo vir a se embriagar, deverá se abster de beber. Pois, ao embriagar-se, pode perder a compostura e a dignidade de um ser humano e chegar a não cumprir algumas mitsvot assê (ativas) e transgredir mitsvot lô taassê (passivas).
Consta na Guemará (Pessachim 113b) que Hashem gosta de três tipos de pessoas: aquele que não se enerva, o que não se embriaga e aquele que é transigente e flexível, cedendo em favor do próximo - “maavir al midotav”.
Conduzir em alta velocidade
Deve-se obedecer a todas as leis de trânsito. É proibido conduzir em velocidade acima da permitida. Não se deve, de forma alguma passar em farol vermelho, etc.
Temos a obrigação também de evitar qualquer situação que possa pôr em perigo a integridade física tanto do condutor, quanto dos passageiros, quanto de outros veículos e dos pedestres. Exemplo: é proibido conduzir qualquer veículo falando ao celular ou mexendo nele.
‘Cuide-se e cuide muito de sua alma’
De forma geral, temos de tomar todas as precauções para não nos colocarmos em perigo e não colocar outros em situações de risco.
Conforme nos diz o Shulchan Aruch: “Por isso, todo obstáculo que coloca em risco a vida de um ser humano é um preceito ativo removê-lo, resguardar-se dele e ser muito cuidadoso com ele, conforme mencionado: ‘Cuide-se e cuide muito de sua alma’ (Devarim 4:9). E se a pessoa não tirar e não colocar de lado os obstáculos que são perigosos, ela estará se abstendo de cumprir o mandamento ativo e transgredindo o mandamento passivo de ‘Não traga sangue para seu lar’... Todo aquele que transgride estas coisas e seus correlacionados e diz: ‘Eu estou colocando em perigo a mim - o que os outros têm a ver com isso?’ ou ‘Eu não ligo para isso!’, receberá o castigo de um rebelde. Aquele que for zeloso, bênçãos recairão sobre ele.”
O Beer Hagolá (Rav Moshê Rivkas - comentarista do Shulchan Aruch) diz: “Aquele que se põe em perigo é como se desdenhasse a Vontade do Criador - não estando interessado em servi-Lo, nem em receber Sua recompensa. E esse é o maior desprezo de apostasia.!” É bom que escutem o meu conselho!
Temos que ser muito prudentes em todos os assuntos ligados com situações de perigo, porque a Torá - mediante o versículo “vachay bahem”, e viverás por elas - nos ensina e revela o quanto é importante dar valor à vida. É por conta dela que podemos estudar Torá, cumprir mitsvot, ajudar o próximo com chêssed (generosidade) e rachamim (misericórdia) e cuidarmos de nossa família. Portanto, preservar a vida e a saúde é um dos fundamentos principais de nossa Torá.
Para maiores esclarecimentos sobre assuntos ligados a perigo e integridade física da pessoa, vide Shulchan Aruch Yorê Deá, capítulo 116, Shulchan Aruch Harav volume 6, da pág. 1769 à pág. 1775, Aruch Hashulchan Yorê Deá volume 2, capítulo 116 e comentários do Caf Hachayim sobre o cap. 116, Yorê Deá. Nos livros citados há várias orientações também de como zelar pelo patrimônio próprio e dos semelhantes.
Raivoso e orgulhoso: o caminho do meio não é suficiente!
Há temperamentos, observa o Rambam, para os quais não se deve optar pelo caminho intermediário. Nesses casos, deve-se ser radical, ou seja, distanciar-se dessa característica de um extremo ao outro. Isso é, por exemplo, o caso do orgulhoso. Não há meio humilde ou meio orgulhoso. Não basta ser humilde. Deve-se ser sim, extremamente humilde. É preciso que ele seja shefal ruach (muito humilde), um grau mais elevado que anav (humilde).
Todo indivíduo que se orgulha de si mesmo é como se não acreditasse (chas vechalila) no Criador. Conforme escrito na Torá, “seu coração se enche de soberba e você corre o risco de esquecer-se de Hashem” (Devarim 8:14). Nossos chachamim ainda alertam que a pessoa orgulhosa deveria ser “colocada à margem (em ostracismo)”.
Com relação à ira, que é uma característica extremamente negativa, o indivíduo também deve procurar o outro lado da balança, ou seja, afastar-se completamente desse tipo de comportamento, tal como no caso de quem é orgulhoso. Ele deve se habituar a não se encolerizar, ainda que sobre algo que, a priori, pareça ser relevante e justifique esta atitude. Se quiser impor respeito a seus filhos, à família ou ao público - caso seja responsável pelo público e quiser que melhorem suas atitudes, para que façam teshuvá - que apenas simule sua zanga, fingindo, como se fosse uma encenação, sem senti-lo em seu íntimo. Por dentro, deve manter a calma e ter autocontrole absoluto.
Nossos chachamim frisam que, aquele que se enerva e perde o controle, é como se fizesse avodá zará (idolatria), pois fica zangado ao ser contrariado, ao ver que seus desejos não foram satisfeitos. Nesse caso, em seu interior, acredita que tudo deveria acontecer conforme suas vontades, como um deus, numa espécie de autoidolatria.
E quais as consequências disso? No caso de um sábio, no momento em que se deixa dominar por esse sentimento, perde a sabedoria; se ele é um profeta, sua profecia se afasta dele, etc. (veja capítulo 1, item 4). Segundo o Rambam, a vida das pessoas encolerizadas não pode ser chamada de “vida”. Elas estão sempre irritadas, com “pressão alta”, incomodadas. Nada lhes agrada, tudo está errado. São pessoas constantemente angustiadas, que nunca estão contentes.
Por tudo isso, nossos chachamim nos ordenaram a nos afastarmos da raiva, a tal ponto que nos tornemos insensíveis a ela (inclusive a situações e fatos que, talvez, “justificassem” esse tipo de comportamento).
Assim, tanto no caso do orgulhoso quanto do zangado, o caminho correto é o outro extremo dessas duas características.
Não revidar
E o caminho dos tsadikim é não retrucar ao serem insultados. Eles ouvem os insultos e não respondem. Servem Hacadosh Baruch Hu com amor, estão satisfeitos com as dificuldades que surgem em seu caminho. E sobre eles está escrito no passuk: “Esses que gostam de Hashem são comparados ao raiar do Sol, com toda sua potência”.
A palavra é de prata; o silêncio é de ouro
Shim’on, seu filho, (filho de Raban Gamliel) diz (Pirkê Avot 1, 17): “Todos os dias da minha vida, cresci, fui criado entre os chachamim, e não encontrei nada melhor do que o silêncio”. Na verdade, esse é o ponto principal, na nossa literatura, sobre a questão de a pessoa manter o silêncio. Afinal, quantas vezes nos arrependemos de não tê-lo feito? Assim, antes de falar, é melhor pensar, para não se arrepender.
Rav Shelomô Wolbe z’l (1914-2005), escreveu em seu livro Alê Shur que, quando uma pessoa está assistindo a uma aula ou uma palestra, é importante que ela ouça e não faça perguntas, pois, quando pensa nas perguntas fica preocupada com elas e não consegue prestar atenção e ouvir o restante da explanação. Isso não quer dizer que não se devam sanar dúvidas pontuais e pertinentes ao assunto. É evidente que elas devem ser respondidas. Mas há que se ter moderação e bom senso nas questões.
No Pirkê Avot, estão citadas algumas diferenças entre um chacham (sábio) e um golem (pessoa imatura, não formada). Dentre elas, a de que o chacham apenas pergunta sobre o assunto estudado e, ao ser questionado, ele se limita a responder aquilo que lhe foi perguntado.
Continua o Rambam que, quando a pessoa resolve optar pela fala, em vez do silêncio, que ela profira palavras sábias, sobre assuntos inteligentes ou necessários ao seu dia a dia.
Havia um sábio no Talmud, chamado Rav, aluno de Rabi Yehudá Hanassi. Dele se conta que nunca, durante toda sua vida, dedicou-se a uma conversa frívola. E o Rambam acrescenta que, infelizmente, a maioria dedica-se a assuntos banais, fúteis.
No entanto, mesmo sobre temas pertinentes e necessários, ninguém deve se exceder em palavras, orienta o Rambam. Os chachamim nos ensinaram que todo aquele que se excede na fala, acaba pecando, saindo do contexto.
Nós temos muitas mitsvot que dependem de nossa fala. O Talmud Yerushalmi menciona o que diz Rabi Shim’on ben Lakish: que se estivesse fisicamente no Har Sinay, no momento do recebimento da Torá (pois todos nós, yehudim, estávamos lá, naquela ocasião, de maneira espiritual), ele pediria a Hashem que criasse duas bocas para o ser humano: uma para os assuntos sagrados (kodesh) e outra, para os mundanos. O raciocínio de Rabi Shim’on ben Lakish é o de que a mesma boca que reza, cumpre mitsvot e estuda Torá também pode acabar falando lashon hará (maledicência), ou chanufá (bajulação), ou seja, coisas proibidas por Hashem. Saber que a boca é usada para assuntos sagrados ajuda a evitar que ela sirva a propósitos proibidos ou desnecessários.
E observa o Rambam: ao transmitir palavras de Torá, de chochmá (sabedoria), procure abordar um grande assunto com poucas palavras. Aquele que se dedica a um discurso longo, pode acabar deixando quem o escuta sem entender a mensagem principal do mesmo.
Nossos chachamim entenderam que o espectro da fala é tão amplo, que além de envolver proibições, como lashon hará, chanufá (bajulação), agressão verbal, etc., ele abrange a forma de falar ao tratar de assuntos permitidos, ligados à chochmá, à Torá. Deve-se ter um discurso claro, com poucas palavras, mas com muito conteúdo. Caso a fala seja extensa, mas seu conteúdo, pobre, isso não mostra sabedoria, mas o contrário dela. Esse exemplo vale também para quem é professor.
Disseram nossos chachamim, e explica o Rambam, que num sonho, com vários assuntos, há apenas um ponto importante nele. Assim também deve ser a fala. Como declarou Shelomô Hamêlech: “Pois um sonho vem com muita preocupação e a voz do tolo, com muitas palavras”.
do livro “Íntegro”