Mishná Introdutória
Col Yisrael yesh lahem chêlec Laolam Habá, sheneemar: “veamech culam tsadikim leolam yirshu árets, nêtser mataay, maassê yaday lehitpaer”.
Todo judeu tem uma parte no Mundo Vindouro, como está escrito: “E Seu povo, todos são justos. Para sempre herdarão a terra (o Mundo Vindouro), galho de Minha ramificação, atos de Minhas mãos dos quais há de se orgulhar”.
O Pirkê Avot começa trazendo uma mishná de outro tratado talmúdico, o Tratado de San’hedrin. Analisemos esta mishná:
“Todo judeu tem uma parte no Mundo Vindouro”.
Mas será que é assim mesmo, que todo judeu tem uma parte garantida no Olam Habá (o Mundo Vindouro)?
A princípio, Sim: todos têm uma parte no Mundo Vindouro, não importa qual seja a sua conduta. Mesmo que a pessoa não tenha feito nem uma única mitsvá durante toda a sua vida, somente pecados - ainda assim, se é judeu, tem garantida sua parte no Mundo Vindouro! A raiz do judeu, o local de onde sua alma veio, é o Mundo Vindouro, não importa o que faça durante a vida.
Mas então surge a pergunta: Se é assim, para que precisamos nos esforçar tanto? De qualquer modo vamos receber o nosso quinhão no Mundo Vindouro! A resposta é que realmente todos têm uma “parte” no Olam Habá, mas o “tamanho” dessa “parte” depende do quanto nos esforçamos.
Aquele que não cumpre muitas mitsvot terá uma parte pequena, enquanto que o que sim faz a vontade de D’us terá uma parte maior.
O livro Messilat Yesharim, escrito pelo Rabino Moshê Chayim Luzatto (conhecido como Ramchal - Itália, 1707-1746) diz que o Mundo Vindouro pode ser dividido em diversas regiões, como o mizrach (leste), maarav (oeste) e assim por diante. O leste é o lugar destinado àqueles que estão mais próximos de D’us. Assim como em uma sinagoga os mais importantes sentam-se na frente, no Mundo Vindouro os mais justos sentar-se-ão no leste. Quanto mais mitsvot a pessoa faz, mais sua alma se move para o lado leste, ficando, portanto, mais próxima de D’us.
Há quem compare isto a um pomar: quanto mais trabalharmos, mais frutífero será. O mesmo ocorre neste mundo: quanto mais cumprirmos a Torá e suas mitsvot, maior será nossa parte no Olam Habá.
O Rabino Yaacov Krantz, mais conhecido como Maguid de Dubno (Polônia, 1741-1804), trouxe outra explicação para as palavras “Todo judeu tem uma parte no Mundo Vindouro”. Ele explica que realmente já nascemos com esta parte, mas para poder recebê-la, precisamos cumprir a Torá e suas mitsvot. Devemos trabalhar neste mundo para poder merecê-la. O motivo pelo qual D’us fez assim, explicou o Maguid, é que é muito mais fácil para o ser humano se esforçar para não perder algo que já tem, do que trabalhar para receber o que ainda não possui. Nossa parte no Mundo Vindouro já nos pertence a partir do momento em que nascemos e só nos resta cumprir a Torá para poder desfrutar dela depois. Quem não cumpre as mitsvot, portanto, não está deixando de ganhar essa parte, mas sim perdendo o que tinha. E é por isso que a Mishná escreve “Todo judeu tem uma parte no Mundo Vindouro”, mas esforce-se por não perdê-la!
Por que nossos Sábios escolheram esta mishná como introdução ao Pirkê Avot se, originariamente, ela não faz parte do livro?
Explicou o Chatam Sofer, Rabino Moshê Sofer, que no tratado de San’hedrin esta mishná apresenta uma continuação, relacionando aqueles que não terão direito a entrar no Olam Habá, e entre eles estão os apicorsim, pessoas que não acreditam que a Torá é Divina. Por outro lado, a primeira mishná no Pirkê Avot é: “Moshê recebeu a Torá no Sinai”, nos ensinando que a Torá sim veio do Todo-Poderoso. Conclui o Chatam Sofer: daqui vemos a conexão entre essas duas mishnayot: “Todo judeu tem uma parte no Mundo Vindouro”, com a condição de que acredite que “Moshê recebeu a Torá no Sinai”.
Capítulo I, Mishná 1
Moshê kibel Torá Missinay, umssaráh Lihoshua, Vihoshua lizkenim, uzkenim linviim, unviim messaruha Leanshê Kenêsset Haguedolá. Hem ameru sheloshá devarim: hevu metunim badin, vehaamidu talmidim harbê, vaassu seyag Latorá.
Moshê recebeu a Torá no Sinai, e entregou para Yehoshua, Yehoshua aos anciãos, os anciãos para os profetas, e os profetas a entregaram aos membros do Grande Conselho Rabínico. Estes disseram três coisas: Sejam cautelosos no julgamento, formem muitos discípulos e façam uma cerca de proteção para a Torá.
Esta mishná cita a cadeia de transmissão da Torá desde sua outorga, há mais de 3.300 anos, até os dias dos tanaim, os rabinos mencionados na Mishná. Nossa mishná conclui com os conselhos transmitidos pelos membros do Grande Conselho Rabínico. Como veremos a seguir, grande parte do primeiro capítulo nos apresenta os maiores sábios das primeiras gerações da Mishná e nos transmite as mensagens principais que eles passaram à sua geração e às gerações posteriores.
A linha histórica trazida nesta mishná é muito breve e não tem como intenção se aprofundar em referências históricas. Vamos identificá-la um pouco mais:
Moshê foi o líder máximo do Povo Judeu, que os liderou na saída do Egito e nos 40 anos de viagem pelo deserto. Yehoshua foi o sucessor de Moshê. Ele e os anciãos de sua época lideraram o Povo Judeu em sua entrada na Terra de Israel e administraram a conquista e divisão da terra entre as doze tribos de Israel. Com o falecimento dos anciãos, iniciou-se o período dos profetas, os líderes espirituais da nação até a época da Mishná, aproximadamente 1.000 anos depois. A “mão” de D’us já não mais estava abertamente revelada a todos os membros do Povo Judeu da maneira que esteve durante a saída do Egito e a miraculosa conquista de Israel. Mas de qualquer forma, D’us ainda se comunicava abertamente com os grandes homens e mulheres de Israel através de profecia e inspiração Divina. Os líderes espirituais e muitas vezes os líderes políticos de Israel eram indivíduos cuja autoridade provinha diretamente das palavras de D’us.
Quando do falecimento dos últimos profetas, no início da era do Segundo Templo Sagrado de Jerusalém, o período da Grande Assembléia ou Grande Conselho Rabínico iniciou-se. Este era um corpo religioso e judicial que consistia de 120 dos maiores sábios de Israel. Estes gigantes espirituais reconheceram a significância de seu período de transição e, em nossa mishná, aconselharam o povo apropriadamente.
O Pirkê Avot veio nos ensinar sobre midot tovot, regras de boa conduta. Assim sendo, por que, então, a primeira mishná fez questão de trazer a origem da Torá? Qual a ligação entre a linha histórica e padrões de boa conduta?
Explicou o Rabino Ovadyá de Bartenura (Itália e Israel, século XV) que entre as nações do mundo existem muitos livros sobre ética e moral, mas são baseados em sua própria experiência, criados para o bem da sociedade. A Mishná vem aqui nos ensinar que tudo o que nós temos veio diretamente de D’us para Moshê, mesmo as regras sobre ética e conduta, e assim foi passando por tradição até hoje.
“Entregou para Yehoshua”
Mas por que a Torá teve de ser transmitida de geração em geração? Quem quiser, que a pegue no Aron Hacôdesh! Por que precisamos de toda essa tradição?
A resposta é que não somente a Torá Escrita foi entregue por D’us no Monte Sinai, mas também a Torá Oral. Os quarenta dias que Moshê permaneceu no Sinai foram para poder aprender toda a Torá Oral e fazer as chazarot (revisões).
A Torá Escrita é o Chumash (Pentateuco). Trata-se dos cinco livros escritos por Moshê Rabênu contendo todas as mitsvot (mandamentos) ordenadas pelo Todo-Poderoso, tanto aquelas que praticamos através de atos como as praticadas “através do coração”. A Torá Oral contém as explicações, esclarecimentos e ensinamentos da Torá Escrita.
Então, quando Moshê desceu do Monte Sinai e transmitiu a Torá a Yehoshua, ele ensinou-lhe também a Torá Oral, e é esta que precisa ser passada de pai para filho.
Moshê não poderia passar a Torá Escrita sem a Oral, pois elas são interdependentes. Não podemos entender uma sem a outra, pois a Torá Oral veio para explicar a Torá Escrita. Muitos mandamentos estão mencionados em um único versículo ou parte dele, sem nenhum detalhamento maior. Por exemplo: Está escrito (Devarim 12:21): “Vocês podem abater seu gado ou seu rebanho... da forma que Eu lhes ordenei”. Porém, não há lugar nenhum em toda a Torá que traga as instruções sobre o abate de animais. Para sabê-las, a pessoa tem que estudar o Tratado do Talmud chamado Chulin, parte da Torá Oral.
Como alguém poderia cumprir nosso belo Shabat apenas com as poucas dicas trazidas no Chumash? Não trabalhe (seja lá o que isto realmente quer dizer), não acenda o fogo, os limites geográficos aonde se pode ir no Shabat, etc. Para cumprir o Shabat corretamente, precisamos estudar o Tratado talmúdico chamado Shabat.
Apareceram dificuldades em entender determinados incidentes do Chumash? O Midrash acrescenta inúmeras nuances e detalhes para nos ajudar a entender o Chumash mais profundamente. A Torá Oral traz vida à Torá Escrita!
Eis outro exemplo para entendermos melhor este assunto. A Torá diz “E escrevam nas mezuzot de suas casas e em seus portões”. Mas o que é uma mezuzá? Sobre isso a Torá Escrita não explica nada! Para isso precisamos da Torá Oral, que nos ensina exatamente o que é e como fazer a mezuzá que temos nas portas de nossas casas.
Mais um exemplo: Nesse mesmo versículo a Torá fala sobre os tefilin. Mas o que são tefilin? Uma caixa preta com pergaminhos dentro. Se procurarmos, veremos que na Torá Escrita não consta nada sobre isso! De onde sabemos que ele tem que ser quadrado, com tiras, pintado de preto, etc.? Para isso temos a Torá Oral, que nos explica tudo o que consta na Escrita.
Atualmente, também a Torá Oral está sob forma escrita, mas nem sempre foi assim. Existia uma proibição de se escrever a Torá Oral e somente há cerca de dois mil anos ela foi transcrita.
Por que desta proibição? Quando temos algo escrito no papel é muito mais fácil esquecê-lo, pois confiamos que a qualquer hora poderemos voltar e relê-lo novamente. Porém, se houvesse uma situação onde lembrar de determinado assunto dependesse exclusivamente de nossa memória e se não lembrássemos, tudo estaria perdido, trabalharíamos constantemente para não esquecê-lo. D’us não queria que a Torá Oral fosse esquecida. Pelo contrário: Ele queria que estivesse sempre viva e em prática nas casas judaicas. Por isso foi proibido escrever a Torá Oral e foi ordenado que fosse transmitida de rabino para aluno.
Por que então nossos sábios a escreveram? Explica o Rabênu Yoná (Espanha, *-1263) que isso ocorreu na época da destruição do Segundo Templo Sagrado de Jerusalém, na qual o nosso povo estava passando por muitos problemas e sofrimentos. Nesta situação, os judeus não tinham condições de se aplicar devidamente no estudo da Torá e acabariam esquecendo-a. Constatando esta situação, nossos Sábios temeram que a tradição se rompesse, e Rabênu Hacadosh (Rabi Yehudá Hanassi) decidiu escrever a Torá Oral para garantir que continuasse eterna. Os sábios daquela geração se basearam em um versículo (Tehilim 119:126) e assim transcreveram a Mishná e a Guemará (o Talmud). Com a conclusão da escrita da Guemará, nada mais pôde nem pode ser acrescentado ao que está escrito nelas.
Continua explicando o Rabênu Yoná que a geração que escreveu o Talmud passou-o para os gueonim (séculos VII a XI e.c.), e assim foi sendo transmitido de rabino para rabino, até os dias de hoje!
Porém, surge uma pergunta: se hoje em dia a Torá Oral está escrita, então para que precisamos continuar com a tradição? Por que o Rabênu Yoná afirmou que temos que continuar passando-a de rabino a rabino, mesmo hoje em dia? Cada um poderia pegar a Torá ou o Shishá Sidrê Mishná e estudar sozinho!
A resposta é que a Torá é muito complexa. A pessoa que estuda sozinha, sem o rabino, pode não entender de forma correta e chegar a conclusões erradas. Às vezes dois trechos da Torá Oral parecem contraditórios e precisamos de um rabino para nos esclarecer e explicar. Por isto é tão importante a figura de um rabino, para que nos ensine como estudar e qual é a explicação certa. Sem ele, ficaríamos perdidos na imensidão e profundeza da Torá.
Lembro-me de haver citado na Yeshivá Guevohá de São Paulo uma frase que ouvi do meu rabino, o Rabino Asher Arieli (Yeshivá de Mir, em Jerusalém), que a escutou de seu rabino, o Rabino Nachum Partsovitz (Lituânia e Israel, 1923-1986), que a ouviu de seu rabino, o Rabino Baruch Ber Leibowitz (Lituânia, 1866-1939), que por sua vez a escutara de seu rabino, o Rabino Chayim Soloveitchik de Brisk (conhecido como Rav Chayim Brisker, Bielorrússia, 1853-1918). Vejam só que incrível: após cinco gerações estamos ouvindo as mesmas palavras que o Rav Chayim disse!
do livro “Mussar Avicha”