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Dunera – Rumo à Austrália

Joias do Maguid

Os caminhos de D’us são misteriosos. O Rei David escreveu (Tehilim 92): “...Senhor, muito profundos são Teus pensamentos. Pessoas simples não conseguem entender isso”. Homens sábios, por outro lado, podem apenas relaxar, seguros de que existe uma razão para cada fato ocorrido.

O jovem Moshê Rabih se considerava um jovem com sorte. Quando o regime nazista alemão estava começando a erguer a sua horrorosa cabeça em 1939, um patrono inglês, Sr. Moshê Shneider, se propôs a patrocinar a viagem de Moshê, então com 16 anos de idade, de Frankfurt para Londres. Esta iniciativa fazia parte de um programa de retirada de crianças da Alemanha, na esperança de poupar os jovens da agonia que estava prestes a recair sobre os judeus nas mãos dos nazistas.

Entretanto, pouco depois de chegar à Inglaterra, o jovem Moshê foi notificado que seria enviado a um campo de refugiados. Segundo os britânicos, espiões alemães haviam se infiltrado na Inglaterra misturados com os refugiados judeus, e a Scotland Yard não queria correr nenhum risco. Inicialmente, os inimigos estrangeiros foram classificados em três categorias. Os “suspeitos de ligações com as forças alemãs”, como marinheiros ou soldados, eram aprisionados. Os adultos alemães com outras ocupações tinham seu trânsito restringido. Os enquadrados na terceira categoria, as crianças, estavam livres para viver com famílias que desejassem hospedá-las. Porém, depois que a Alemanha conseguiu uma grande vitória tática em 1940, em Dunquerque - França - causando a retirada de centenas de milhares de soldados franceses e ingleses, todos os alemães, tanto judeus como não judeus, eram levados juntos para campos de detenção, primeiro em Londres e depois em Liverpool.

As condições nos campos de detenção eram horríveis, o espaço era reduzido e a comida escassa. Os internos reclamavam amargamente e logo as autoridades britânicas ofereceram, a qualquer um que desejasse, a oportunidade de deportação para o Canadá. Muitos judeus, incluindo Moshê, decidiram deixar os campos ingleses, imaginando que a situação não poderia piorar, mas estavam enganados.

Os judeus alemães foram levados para uma ilha, onde embarcaram num navio chamado Dunera, que deveria viajar para o oeste, em direção ao Canadá, mas foram enganados. Depois de numerosos dias no mar, ficou óbvio a muitos a bordo que o Dunera estava navegando para o sul. Depois de muitas perguntas, foi-lhes revelada a verdade: estavam a caminho da Austrália!

Durante a viagem, os judeus foram submetidos a constantes abusos e ridículos; eram perseguidos e humilhados incessantemente. A nenhum deles foi permitido subir ao convés para respirar um pouco de ar puro. Pelo contrário, foram cercados com arame farpado para garantir que permanecessem no porão do enorme navio. Marinheiros, tripulantes e até o capitão arrancavam os pertences dos judeus, alegando que aquelas coisas estariam mais seguras nas mãos das autoridades. Os tripulantes ingleses chegaram até a emitir recibo das coisas que pegavam, mas os judeus, em breve, perceberam que os recibos, bem como as promessas da tripulação, de nada valiam.

Os deprimidos viajantes estavam solitários, amedrontados e tensos sobre o seu futuro. Tinham-lhes restado poucas posses. Além disso, sabiam que o Oceano Pacífico estava repleto de ameaçadores navios e submarinos bélicos alemães. Sentiam-se abandonados e sem controle sobre o seu destino.

Os membros da tripulação inglesa acompanhavam os boletins de guerra pelos rádios. A situação não era favorável ao exército inglês, pois as forças alemãs obtinham vitórias táticas, uma após a outra.

Certo dia, o Dunera escapou por pouco de uma catástrofe. Uma enorme onda, milagrosamente, desviou o navio de um torpedo disparado por um submarino alemão. Embora o torpedo tivesse passado apenas de raspão, os marinheiros ingleses ficaram furiosos e sentiram-se humilhados só de pensar que quase haviam sido explodidos. Num acesso de raiva, descarregaram sua fúria sobre os alemães a bordo.

Imbuídos de uma crueldade calculada, os ingleses recolheram as últimas posses que os estrangeiros alemães ainda possuíam e atiraram-nas, pela amurada, nas revoltosas águas do Pacífico. As últimas ligações dos pobres viajantes com suas vidas passadas - cartas, pequenos objetos herdados e preciosos livros - tinham-se ido para sempre. A escuridão da noite refletia seu desespero. Moshê e os demais a bordo choravam por esta última indignidade. Não possuíam mais nada de seu passado além de memórias. Entorpecidos e arrasados, olhavam seus pertences espalhados pelo mar, descendo e subindo novamente à superfície, ao serem jogados de uma onda para outra.

Finalmente o Dunera, com sua carga de almas despedaçadas, chegou a Sydney, na Austrália. Todos os passageiros desembarcaram lá. Logo o Dunera começou a sua viagem de volta para a Inglaterra. Um dia ou dois depois de ter partido, somente com a tripulação inglesa a bordo, foi torpedeado por submarinos alemães. Explodiu e todos a bordo morreram.

*   *   *

Há poucos anos atrás um filme foi liberado, tanto na Inglaterra como na Austrália, sobre o Dunera - “The Dunera Boys”, 1985. O filme era nada honroso sobre a tripulação inglesa do navio, pois criticava seu comportamento rude e insensível para com os passageiros a bordo. Quando a marinha britânica objetou o modo como os seus membros estavam sendo retratados, o Parlamento em Londres abriu um inquérito para verificar se realmente os marinheiros ingleses, décadas atrás, haviam sido cruéis e desumanos.

Quando mais fatos sobre o incidente vieram à tona, o diário do comandante alemão que torpedeou o Dunera veio a público. Nele constavam algumas incríveis passagens. O diário revelou que o comandante alemão realmente alvejara o Dunera em sua viagem para a Austrália. Ele disparara um torpedo contra o enorme navio mas, para sua surpresa, não foi um tiro certeiro. Logo, ele e seus comandados estavam prontos para torpedear novamente o navio e mandá-lo pelos ares. No entanto, quando espiaram pelo periscópio, perceberam malas e outros objetos flutuando no oceano próximo ao Dunera. Pensando que aquele material pudesse ter utilidade para reunir informações sobre o inimigo, o comandante enviou mergulhadores para recolher todos os itens.

Quando os mergulhadores voltaram ao submarino alemão, os artigos trazidos foram cuidadosamente examinados. Os alemães constataram que, no meio do material recolhido, existiam cartas pessoais escritas em alemão fluente, livros alemães e outros objetos, claramente procedentes da Alemanha. Perceberam, então, que havia cidadãos alemães a bordo do Dunera. Portanto, para salvar a vida de seus compatriotas que, obviamente, estavam sendo levados da Inglaterra para a Austrália, o comandante alemão ordenou à sua tripulação que não atirasse no Dunera. Além disso, transmitiu uma mensagem pelo rádio para todas as embarcações alemãs presentes na área para evitarem atingir este barco, pois seu submarino acompanharia o navio à distância. E assim foi, por todo o percurso, até Sydney.

Uma vez que o barco atracou e os passageiros foram desembarcados, o comandante se sentiu seguro de que não havia mais alemães a bordo. Sua consciência agora estava tranquila e, na viagem de volta do Dunera à Inglaterra, ele destruiu o navio.

Então, o que Moshê Rabih e seus companheiros judeus pensavam ser a pior das indignidades - atirarem ao mar todos os seus últimos pertences - foi, na verdade, um ato de providência Divina que os salvou. O que consideraram ser o rompimento com o seu passado foi, de fato, a ponte para o seu futuro.

Moshê Rabih, junto com muitos membros de sua família, ainda vivem na Austrália, onde são parte integrante da comunidade judaica de Melbourne.

Tradução da história “Castaways”, do livro “Around the Maggid’s Table”, de autoria do Rabino Pessach J. Krohn.

Publicado com permissão da Messora Publications.