Abstinência total: o caminho errado
Talvez a pessoa conclua: já que nossos sábios disseram que a inveja, o desejo e a busca pelo cavod tiram o indivíduo desse mundo, então o melhor a fazer é abster-se totalmente desse mundo. A ponto de não comer carne, nem beber vinho, não se casar, nem ter uma casa confortável e vestir-se apenas com roupas extremamente simples, feitas com tecidos rústicos ou até esfarrapados. Esse também não é o caminho correto, alerta o Rambam. Pelo contrário. É proibido andar por uma trilha extremista como essa. Se o sujeito assim o fizer, será um pecador, pois estará se privando das coisas que Hashem lhe deu, como comida, bebida, esposa, possibilidade de viver em uma casa agradável, vestir-se de forma nobre.
O Rambam chama a atenção para o nazir, que é aquele que promete, por pelo menos 30 dias (não existe o voto de nezirut por menos do que isso), não cortar os cabelos, não beber vinho, nem comer uvas, nem se impurificar pelos mortos. Após esse período, ele deve trazer um sacrifício por seu pecado - o de ter-se privado do vinho e das uvas. Ele é cobrado por ter-se abstido do vinho e das uvas, ainda que por um período determinado. Quanto mais aquele que se abstém de várias coisas, sem que isso seja feito de modo equilibrado...
Aqui, percebemos que o Rambam está tentando nos mostrar, a todo o momento, a necessidade de encontrar o equilíbrio, o caminho do meio.
Não se privar do que é permitido pela Torá, mas usufruir sem excessos...
Por isso, nossos chachamim ordenaram que o indivíduo se privasse, apenas, daquilo que a Torá o proíbe.
Há uma passagem no Talmud, na qual um rav vê um de seus alunos abstendo-se de coisas permitidas pela Torá. Ele o indaga: “Não lhe é suficiente o que a Torá já nos proibiu”?
Contudo, uma observação: mesmo dentro daquilo que é permitido pela Torá, há a necessidade de se encontrar o equilíbrio em seu consumo. Por exemplo, não se pode passar o dia bebendo vinho casher e denegrindo sua imagem, que é a imagem de Hashem, ao beber demasiadamente e perder o autocontrole.
Assim, não devemos nos privar daquilo que é permitido pela Torá, mas não podemos perder o controle sobre isso, excedendo-nos. “Santifiquem-se”, diz a Parashá Kedoshim, no Sêfer Vayicrá. “Kedoshim tihyu” - kadesh atsmechá bemutar lach - santifique-se mesmo naquilo que lhe é permitido. Vide Ramban no início de Parashat Kedoshim. (Veja capítulo 1, parágrafo 6).
Promessas e juramentos
Também não se deve fazer promessas ou juramentos sobre o que é permitido pela Torá, como por exemplo, comprometer-se a nunca mais comer determinado alimento. É muito grave fazer promessas e juramentos. Se o indivíduo quiser se abster, que o faça sem jurar ou prometer. Para anular essa promessa, é preciso que se faça Hatarat Nedarim diante de um talmid chacham (um sábio perito em hatarat nedarim) e de mais dois homens, que entendam - após breve explanação - o que é hatarat nedarim e suas leis básicas.
Dentro desse conceito, estão incluídas as pessoas comuns que jejuam constantemente .
Há tsadikim que costumam jejuar, mas eles sabem exatamente como agir e não cabe a nós qualquer tipo de crítica ou ressalva à conduta de homens dos quais não temos sequer noção de sua grandeza.
Impor sofrimento sobre si mesmo, por meio de jejuns, é algo proibido por nossos chachamim. Sobre isso e atitudes semelhantes, afirmou Shelomô Hamêlech (Cohelet 7:16): “Não seja tsadik demais, nem seja inteligente demais (achando que essas coisas são benéficas), pois a falta delas o deixará desolado”.
Tudo para os Céus
Há um trecho na Guemará, no qual o chacham Bar Capará pergunta: “Qual o pequeno trecho que existe na Torá, ao qual toda a Torá está ligada a ele?” O próprio Bar Capará responde: “Que você canalize suas atitudes Leshem Shamáyim”. Daqui, aprendemos que se canalizarmos todas as coisas, inclusive as materiais, das quais precisamos no nosso dia a dia, Leshem Shamáyim, para os Céus, com o único propósito de fazer a vontade de Hashem, estaremos servindo Hakadosh Baruch Hu em todas as situações.
Neste parágrafo, o Rambam diz que é preciso conduzir todo e qualquer pensamento e ação para servir Hashem. E ele traz exemplos: ao se deitar, ao se levantar, ao conversar, tudo deve estar direcionado para fazer a vontade de Hashem - como observou Bar Capará.
Dessa maneira, ao trabalhar, o que, a priori, é algo material, deve-se concentrar todas as intenções para o sustento da família, que é uma mitsvá; manter os filhos em uma boa escola judaica; comprar o necessário para Shabat e Yamim Tovim. Todas as atitudes materiais estarão, assim, dirigidas Leshem Shamáyim.
E o Rambam segue exemplificando: ao fazer um negócio, o objetivo não deve ser o de, exclusivamente, obter lucro, mas realizar essas negociações canalizando o pensamento para que esse dinheiro seja usado na compra de produtos casher, na aquisição de roupas adequadas, para manutenção da casa, e, no caso de solteiros, para que possam se casar. Tendo esse tipo de mentalidade, automaticamente, transcende-se o material e atinge-se o propósito espiritual em obter o sustento.
Ao ingerir alimentos ou bebidas, não se deve fazer isso unicamente para que se tenha proveito. Que sua intenção, observa o Rambam, não seja apenas satisfazer sua fome, ou sua sede, ou ter prazer do alimento; que seu objetivo seja o de manter o corpo saudável para servir Hashem. Que não ingira algo apenas por ser doce ou apetitoso, nem coma tudo o que deseja. Deverão ser ingeridas apenas coisas benéficas ao corpo, sejam elas amargas ou doces. Se elas fazem bem, seu gosto é irrelevante. Ao se comportar dessa maneira, suas atitudes são chamadas Leshem Shamáyim.
Por outro lado, não devem ser ingeridos alimentos que prejudiquem o corpo. Eles devem estar de acordo com suas necessidades ou restrições. Por exemplo, aqueles que possuem hipertensão devem ficar atentos ao sal nos alimentos; os que têm colesterol alto devem se abster de alimentos gordurosos; os diabéticos, da ingestão de açúcar, etc.
Dicas para a saúde
A partir deste parágrafo, o Rambam cita alguns conselhos de saúde (lembremos que ele também era médico). Ele aborda o caso das pessoas que sofrem de muito calor, que têm o que ele chama de “corpo quente”. Essas devem evitar carne, mel e vinho. Para isso, ele traz o exemplo de Shelomô Hamêlech, que escreveu em Mishlê: “Comer mel em demasia não é bom”. Não é bom para aquele que não suporta o mel, que tem o corpo mais quente. O Rambam recomenda a essa pessoa de “corpo quente” que faça um suco à base de alface, que, embora seja amargo, lhe fará bem . Antigamente, os remédios eram feitos, exclusivamente, à base de ervas. São conselhos para manter um físico saudável, com o objetivo de servir Hashem.
Uma vez que não se pode viver sem comer ou beber, afirma o Rambam, é preciso que se saiba de forma exata o que é ou não benéfico para si, particularmente, independentemente de ser algo saboroso ou não. O Rambam encerra este parágrafo em um texto mais específico aos homens casados, resumindo quando se abster ou não de relações matrimoniais.
Objetivo do bem-estar físico - Leshem Shamáyim
Quem se habitua a comer apenas o que é benéfico à sua saúde, mas com o único objetivo de seu bem-estar físico, não está seguindo pelo caminho esperado por Hashem. Sua intenção deve ser a de que seu corpo esteja forte para que sua alma se fortaleça no serviço a Hakadosh Baruch Hu, pois é muito difícil estudar Torá e se aprofundar em seus conhecimentos, caso o corpo esteja fraco, faminto, doente ou com algum tipo de dor. Por isso, as ações humanas, como comer e beber, devem ser dirigidas, exclusivamente, para manter a saúde e, assim, servir Hashem da melhor forma possível.
E quando alguém ficar sabendo de que terá um filho, que tenha em mente que ele será um estudioso de Torá, um grande sábio em Am Yisrael .
Assim, todos os seus passos e atos materiais, dos quais o corpo precisa, serão direcionados ao serviço a Hashem. Seja trabalhando, seja se alimentando ou até mesmo dormindo - se o indivíduo o faz com a intenção de relaxar e descansar para que não fique doente e impossibilitado de estudar Torá - então, até dormindo, ele estará servindo Hashem.
Mesmo as coisas corriqueiras e materiais devem ser canalizadas Leshem Shamáyim. “Todas as atitudes devem ser por amor aos Céus”, disseram nossos sábios. “E que todos os seus caminhos sejam dirigidos a Hashem e Ele o ajudará para que todos os seus caminhos sejam retos”.
Certo dia, Rav Meir Shapira viu um jovem, na plataforma de trem que ficava perto de sua yeshivá, com uma Guemará nas mãos. Perguntou a ele quem ele era e o menino respondeu que se chamava Shemuel Wosner e que tinha ido procurar a Yeshivá do Rav Shapira. Como ele não sabia que seu interlocutor era o próprio Rav Shapira, continuou relatando que não fora aceito, por ser ainda muito jovem e estar atrasado em relação aos outros alunos. Então já estava estudando para logo poder ser aceito na Yeshivá. Ao perceber que o rapaz possuía uma profunda força de vontade, uma vez que já estava estudando em pé na estação de trem, o Rav Shapira pediu ao menino que voltasse à Yeshivá, porque ele o aceitaria desde já.
Naquela yeshivá, a regra era que a luz fosse apagada às 22h, para que os jovens pudessem descansar e estar prontos para estudar Torá bem cedo. Certa vez, Rav Shapira encontrou o mesmo menino, Shemuel Wosner, estudando à luz do luar. Ele o inquiriu e o jovem respondeu que precisava estudar, pois queria aproveitar o tempo e tirar o atraso de seu estudo defasado. O rosh yeshivá disse a ele que fosse dormir e o abençoou para que, quando ele fosse idoso, tivesse a vitalidade da juventude - que caminharia e se sentiria como um jovem. Ao atingir a velhice a berachá se concretizou; andava rápido e com postura ereta, como se fosse um rapaz. Faleceu aos 101 anos e sete meses.
O Rav Shemuel Halevi Wosner zt”l tornou-se uma das maiores autoridades na Halachá de nossa geração. Autor de Sheelot Utshuvot Shêvet Halevi - 11 volumes que contêm o conjunto das decisões e veredictos escritos e proferidos por ele ao longo de sua vida. Habilitou centenas de Morim Horaá - autoridades rabínicas com poder de legislar - espalhados em vários países.
do livro “Íntegro”