Capítulo I, Mishná 1
Shim’on Hatsadic hayá misheyarê Kenêsset Hagdolá. Hu hayá omer: Al sheloshá devarim haolam omed: al Hatorá veal haavodá veal guemilut chassadim.
“Shimon, o Justo, foi dos últimos remanescentes do Grande Conselho Rabínico. Ele costumava dizer: O mundo se apóia sobre três pilares: a Torá, a avodá (serviço Divino) e guemilut chassadim (a beneficência).”
Shim’on, o Justo, serviu como sumo-sacerdote no início da era do Segundo Templo em Jerusalém e, como atesta nossa mishná, foi também o final do período do Grande Conselho Rabínico. Inserindo-o num contexto histórico, o Talmud relata que ele liderou a delegação judaica que recebeu Alexandre, o Grande, quando de sua invasão da Terra de Israel, o que evitou a destruição do Bêt Hamicdash (o Templo Sagrado) pelos macedônios (Yomá 69a).
O Rabino Ovadyá de Bartenura explicou que esta mishná veio nos ensinar o motivo pelo qual D’us criou o mundo. Ela afirma que o universo foi criado por causa de três pontos principais: a Torá (estudo), a Avodá (as oferendas no Templo Sagrado de Jerusalém, que hoje em dia foram substituídas pelas orações) e guemilut chassadim (beneficência). É claro que D’us criou o mundo por causa da Torá como um todo, mas se quisermos saber quais as partes principais da Torá, a Mishná indica estas três, e ainda frisa que é sobre elas que o mundo se baseia. Estes três pilares devem “caminhar” sempre juntos. Assim como em uma mesa de três pés, ao tirar-se um pé, ela cai; também sobre esses três pilares o mundo se baseia, e se faltar um, a “mesa” cai!
Poderíamos pensar que as mitsvot mais importantes da Torá são o Shabat, a cashrut (comer casher), Yom Kipur ou outras. Nossa mishná nos informa que, por incrível que pareça, por mais que todas essas sejam muito importantes, aquelas que mais devemos enfatizar são o estudo da Torá, as orações e a prática de atos de bondade. Foi graças a elas que o mundo foi criado!
Podemos dividi-las em chochmá (sabedoria) - que é a Torá - e maassê (prática) - as orações e a beneficência.
“A Torá”
O Chassid Yaavetz, Rabino Yossef Yaavetz (Espanha, 1435-1507), um dos comentaristas do Pirkê Avot, cita a Guemará (Yomá 9b) que diz que apesar de o Povo Judeu ter transgredido os três pecados mais graves da Torá (idolatria, assassinato e relações incestuosas), o primeiro Bêt Hamicdash (Templo Sagrado) só foi destruído por não estudarem Torá!
Como é possível? Existe uma regra na Torá segundo a qual é pior fazer um pecado do que deixar de fazer uma mitsvá! Ao não estudarem Torá, o povo estava deixando de fazer uma mitsvá, não cometendo um pecado, como com os outros três! Se estavam pecando tão gravemente, por que foram castigados pelo bitul Torá, que não é tão grave como os três pecados citados acima? Além do mais, existe uma outra Guemará que afirma que o Templo Sagrado foi sim destruído por causa destes três pecados!
Para resolver esta contradição, o Chassid Yaavetz trouxe a seguinte parábola:
“Havia um rei que tinha em sua corte um violinista que tocava músicas para o seu deleite. Um dia o violinista fez algo de errado e foi preso pelo governo. O rei, não conseguindo viver sem sua música, fez de tudo para libertar o violinista, com o intuito de voltar a ouvi-lo novamente. Porém, após ser libertado, o violinista resolveu não fazê-lo. Ao saber disto, o rei lhe disse: ‘Eu só o libertei da prisão para que tocasse para mim. Agora que você jurou não tocar mais, pode voltar à prisão, onde merece estar!’”
Durante a existência do Bêt Hamicdash, mesmo cometendo os três piores pecados (assassinato, idolatria e relações incestuosas), enquanto o Povo Judeu estudava Torá, esta era como música aos ouvidos do Rei de todos os reis. O estudo da Torá é como um violino para D’us!
Quando o povo resolveu parar de tocar a “música”, parar de estudar Torá, já não havia mais motivos para o Rei manter Sua proteção especial pelo povo, e então os mandou de volta à prisão, destruindo o Templo Sagrado. O estudo da Torá como que fazia D’us “fechar os olhos” em relação aos três outros pecados.
Muitos de nós não sabem quão importante é o estudo da Torá. Algumas vezes as pessoas que se dedicam continuamente ao estudo da Torá dizem que vêem os outros fazendo atos de beneficência ou outras mitsvot e têm inveja deles, pois elas estão “somente” estudando Torá. Esse é um engano muito grande! Sabemos que há uma outra mishná que diz que o estudo da Torá vale mais que todas as outras mitsvot juntas!
É por isso que a Torá é o primeiro item que a nossa mishná cita, para mostrar-nos que o seu estudo é extremamente importante.
“A Avodá (Serviço Divino)”
Muitas pessoas se enganam e pensam que a tefilá (oração) não tem um objetivo próprio, que é somente um meio para que D’us nos ajude. Quando têm um problema, como de sustento ou de saúde, oram a D’us e esperam que Ele lhes mande a salvação.
No entanto, esta mishná nos ensina que não é assim: a ordem é justamente o contrário. Explicam os nossos sábios que a reza é importante para nós e para o mundo, é um dos pilares do mundo, e D’us gosta muito dela. Porém, infelizmente, há pessoas que não rezam quando tudo está indo bem, pois não sentem nenhuma razão para pedir nada. Aí, então, D’us lhes manda alguns problemas, fazendo com que tenham que rezar. O objetivo é a oração em si e não como um pedido de salvação de eventuais problemas.
“E Guemilut Chassadim”
Nesta categoria está incluído todo tipo de ato que beneficie o próximo. Bondade é ajudar o outro financeiramente (a mitsvá de tsedacá), moralmente, (através de conversas e apoio) e muito mais. Sempre que auxiliamos alguém, em qualquer campo que seja, estamos cumprindo a mitsvá de guemilut chassadim.
Na introdução ao livro Nêfesh Hachayim, de autoria do Rabino Chayim de Volozin (Lituânia, 1749-1821), seu filho escreve que seu pai costumava dizer que viemos para este mundo somente para ajudar o próximo. É para isso que nós existimos! E é a isto que a Mishná se refere quando afirma que esta é uma das coisas na qual o mundo se baseia.
Conta-se um fato ocorrido com o Rabino Eliyáhu Chayim Meisel (Polônia, 1821-1912), que praticava muitas boas ações, entre elas ajudar a libertar pessoas capturadas. Uma vez, o Rabino Chayim Oizer Grodzinski (Lituânia, 1863-1939), um dos líderes espirituais do mundo judaico em sua geração, levou seu livro, Achiêzer, ao Rabino Meisel para que este o lesse e desse sua opinião, como era costume na época. Depois disso, o Rabino Chayim Oizer perguntou-lhe quando teria o mérito de ler um livro de sua autoria. Respondeu o Rabino Meisel: “O quê? Eu já tenho um livro!”. Vendo a expressão de grande surpresa na face de seu companheiro, o Rabino Meisel mostrou uma pasta onde tinha muitas notas promissórias e recibos de empréstimos que havia feito para viúvas, órfãos e pessoas necessitadas. “Esse é o meu livro”, disse o rabino, “um livro de bondade!”.
No final de sua vida, o Rabino Chayim Oizer disse: “A princípio eu pensava que o auge na vida de uma pessoa seria falar grandes chidushim de Torá, mas hoje percebo que isso é ‘brinquedo de criança’ comparado a ajudar viúvas, órfãos e pessoas necessitadas”.
Certa vez o Chafets Chayim dirigiu-se a um de seus melhores alunos e pediu-lhe que dirigisse um guemach (instituição de caridade). O jovem respondeu que não podia, pois estava muito ocupado estudando Torá. O Chafets Chayim então lhe explicou que está escrito na Massêchet Rosh Hashaná (18a) que Rabá (um dos rabinos da Guemará) viveu 40 anos e Abayê (outro rabino da Guemará), 60 anos. Por quê? Responde a Guemará: Rabá apenas estudava Torá e Abayê estudava Torá e também praticava atos de bondade! Disse o Chafets Chayim ao rapaz: “Faça chêssed e viverá mais tempo, e então poderá estudar mais Torá ainda!”
Este é mais um exemplo da grande importância de se fazer boas ações, pois assim mereceremos viver mais!
“Shim’on, o Justo, foi dos últimos (membros) da Grande Assembléia”
Por que justamente Shim’on, o Justo, foi quem disse estas três coisas?
Explica o Ramban que no tempo do domínio grego em Israel, o estudo da Torá estava proibido. Como seguidores de Aristóteles, os gregos só aceitavam aquilo que conseguiam sentir e entender. Tudo o que não era visto ou entendível, não existia. Para eles havia apenas as coisas e sensações do mundo material: quente, frio, quadrado, triângulo, dia e noite. Ruchaniut, assuntos espirituais como a Torá, não passavam de lendas e mitos.
Vemos isto na história de Chanucá, quando os gregos impurificaram o azeite utilizado para acender a Menorá do Templo Sagrado de Jerusalém. Sobre isto, perguntou o Rabino Koppelman, rosh yeshivá de Lucerna: “Por que os gregos fizeram questão de tornar o óleo impuro? Se não queriam que os judeus acendessem a Menorá, que tirassem o óleo e pronto!”
A resposta é que os gregos não entendiam a idéia de “tahará” (pureza) ou “tum’á” (impureza) - para eles era o mesmo azeite! Que diferença fazia se era puro ou não? Por isso eles não tiraram o azeite dos judeus e sim o impurificaram! Eles diziam: “Podem acender, mas com o óleo impuro, pois afinal, é tudo a mesma coisa!”
Shim’on Hatsadic viveu na época do general macedônio Alexandre Magno (356-323 a.e.c., que estudara com Aristóteles). Este último costumava se ajoelhar para Shim’on Hatsadic em respeito à sua grande sabedoria. Justamente por viver nesta época e ter contato com um discípulo direto de Aristóteles, foi que Shim’on Hatsadic propagou o fato de o mundo basear-se sobre a Torá, a avodá e guemilut chassadim, e não na natureza e na lógica, como dizia Aristóteles, mesmo que sejam coisas que não conseguimos ver e, talvez, nem entender. Shim’on Hatsadic queria com esta mishná quebrar a teoria dos gregos que predominava na época!
Sem o estudo da Torá, o mundo não existiria! O mesmo ocorre com a tefilá e as boas ações. Inúmeras vezes alguns partidos políticos de Israel tentaram fazer com que todos os jovens fossem obrigatoriamente alistados no exército, inclusive os que estudam em yeshivot pois, afinal de contas, de acordo com a lógica (Aristóteles), somente assim o Estado poderia se manter. Porém, depois que estudamos esta mishná, sabemos que é de grande importância para o Estado de Israel e para o mundo, que haja jovens estudando nas yeshivot.
Também é assim com as boas ações. A Guemará diz: “Se quiser ficar rico, dê de seu dinheiro aos outros!” Existe alguma lógica nisto? Como é possível enriquecer dando o que temos aos outros? A Mishná nos revela esta verdade, mesmo que não seja aparente e nem tenha lógica! Sobre as boas ações o mundo também se apóia!
Já sobre as orações, nossos sábios explicam que a pessoa pode mudar seu destino por meio delas, mesmo que também não haja lógica!
Outro ponto interessante é notarmos como a Mishná cita estas três coisas: Ela diz “HaTorá” (A Torá), “Haavodá” (A reza), e “Guemilut Chassadim” (boas ações). Se repararmos bem, veremos que ela enfatiza “a Torá” e “a reza”, mas em relação às boas ações, não diz ‘as boas ações’ e sim somente ‘boas ações’. Por que essa diferença?
Explicam os comentaristas do Pirkê Avot que em relação à Torá como um relato de acontecimentos, existem diversas: a dos muçulmanos, a dos cristãos, etc. Porém, temos que escolher “a” Torá, a famosa e verdadeira. O mesmo se dá em relação à avodá. Existem várias, e poderíamos até pensar que o termo avodá se refere ao trabalho material que realizamos no dia-a-dia. Veio a Mishná nos explicar que “a avodá”, a elevada e dedicada a D’us, são as orações.
Porém, quando cita guemilut chassadim, a Mishná não põe um “a” na frente, pois as boas ações devem ser praticadas com todos: Não importa quem bata à nossa porta, devemos ajudá-lo. Seja rabino ou mendigo, pobre ou rico, judeu ou não. A Mishná não enfatizou este último “a” para nos ensinar que boas ações devem ser feitas em qualquer ocasião e com qualquer um.