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Pirkê Avot – Capítulo I, Mishná III

Rabino Ari Friedman

A Guemará nos diz que uma pessoa que quer ser "chassid" - bondoso - que é um degrau acima do "tsadic" - justo - deve cumprir tudo o que está escrito na "Ética dos Pais". Assim, esta seção traz, de forma simples, a sabedoria da Mishá por meio dos maravilhosos conselhos do "Pirkê Avot".

Antignos Ish Sochô kibel Mishim’on Hatsadic. Hu hayá omer, al tihyu chaavadim hamshameshin et harav al menat lecabel perás, ela hevu chaavadim hamshameshin et harav shelô al menat lecabel perás, vihi morá Shamáyim alechem.

“Antignos, da cidade de Sochô, recebeu (a transmissão da Torá) de Shim’on, o Justo. Ele costumava dizer: Não sejas como os escravos que trabalham para o patrão com o intuito de receber recompensa, mas sim como os escravos que trabalham para o patrão não pensando na recompensa. E tenham o temor aos Céus sobre vocês.”

Antignos de Sochô viveu na primeira geração depois dos membros do Grande Conselho Rabínico (das mishnayot 1 e 2). Ele serviu como uma “ponte” entre o Grande Tribunal e a era dos “zugot”, pares de líderes, como veremos nas próximas mishnayot. Na época em que viveu, a Antiga Grécia dominava praticamente todo o mundo civilizado, militar e culturalmente. O Helenismo era a cultura dominante e, como veremos adiante, conseguiu se infiltrar no pensamento judaico também. A influência grega em Israel, de uma forma menos perniciosa, é evidente mesmo no nome grego do autor desta mishná.

O assunto tratado nesta mishná será a avodá, como servir a D’us.

Explicou o Rabênu Yoná que essa mishná vem nos ensinar que não devemos servir a D’us e cumprir Suas mitsvot pensando no que receberemos em troca, mas sim porque queremos e gostamos Dele. E traz dois motivos para isto:

O primeiro é que devemos servi-Lo por hacarat hatov (reconhecer o bem que D’us faz conosco). O Chovot Halvavot ensina que toda a Torá se baseia em reconhecer a bondade Divina e sentir o quanto devemos a Ele: se D’us nos tivesse feito somente uma coisa boa e mais nada, uma vida inteira não seria suficiente para retribuirmos a Ele. Quanto mais com toda a infinidade de coisas boas que D’us faz conosco diariamente, como poderemos pagá-Lo? Pensando desta maneira é que devemos servir a D’us, pois é o mínimo que podemos fazer para Ele e é um dever nosso.

O outro motivo, diz o Rabênu Yoná, é que é digno de um Rei que se faça tudo por Sua grandeza! D’us é o criador do mundo e tudo o que acontece é somente por Sua vontade. Assim sendo, quanto precisamos “dar-Lhe” através das nossas mitsvot e nossa dedicação a Ele.

Com esta mishná, podemos explicar também a proibição da Torá de cobrar juros sobre um dinheiro emprestado, pois este é um dos piores pecados que existe. Por quê? Qual o problema em pagar ou aceitar juros? Por que posso investir em uma fábrica ou em ações e não em juros? Uma das respostas é que a pessoa que tivesse seu sustento baseado no recebimento de juros poderia viver tranqüila por um bom tempo. Todo mês entraria em sua conta certa quantia e pronto. E qual o problema? Parece bom, não? A questão é que isto geraria na pessoa uma grande falta de bitachon (confiança de que tudo vem de D’us), pois não teria que dirigir-se ou rezar para Ele em nenhuma situação.

Esta é uma resposta um pouco difícil de entender, pois se é assim, a pessoa também não poderia viver de aluguel ou qualquer rendimento do tipo. Além disso, é claro que teria que dirigir-se a D’us, pois talvez o devedor não pague o empréstimo e os juros!

Existe, então, uma outra resposta. Ensinou o Rabino Chayim Shmuelevits que há uma mitsvá da Torá de emprestar dinheiro às pessoas que precisam. Se cobrarmos juros sobre o empréstimo, estaremos nos aproveitando de uma mitsvá da Torá para obter lucro próprio, e isso a Torá não quer! Estaríamos “trabalhando para D’us (cumprindo a mitsvá de emprestar dinheiro) pensando na recompensa”, justamente o que a mishná veio nos dizer para não fazer!

Mesmo com relação ao estudo da Torá, o ideal é não se ter nenhum proveito próprio ou lucro por meio dele. Constatamos que muitos rabinos fizeram de tudo para não receber por seu estudo, ou casos de pessoas altamente capacitadas para a função, que não quiseram assumir o cargo de rabino para não chegar a ter proveito da Torá.

Conta-se sobre o Chatam Sofer que, após o casamento, seu sogro lhe disse que poderia estudar a vida inteira e ele o sustentaria. Passou-se o tempo e um dia o sogro perdeu toda a sua fortuna. A esposa não quis contar ao marido e deixou-o continuar estudando. Passado algum tempo, a situação ficou precária e a mulher se viu obrigada a vender um lenço muito caro, que usava todo Shabat, para conseguir mais um pouco de sustento. Quando chegou o Shabat daquela semana, o Chatam Sofer percebeu que sua esposa estava sem o lenço e perguntou o que acontecera. Ela teve, então, de contar que seu pai havia falido.

No dia seguinte o Chatam Sofer foi estudar para ser alfaiate. Ele não queria ser rabino para não tirar proveito de sua Torá. Após alguns dias, percebeu que não estava conseguindo dominar a arte da costura e acabou se resignando ao fato de que seria melhor se dedicar a algo que sabia fazer: sua arte era a Torá. Justo naqueles dias ofereceram-lhe um cargo de rabino em Treinits, na Alemanha. Só então ele foi ser rabino e iluminou com sua Torá o mundo inteiro!

O Midrash (Avot Derabi Natan 5:2) nos conta que Antignos tinha dois alunos chamados Tsadoc e Baytôs, que ao ouvirem a frase “não sejam como os escravos que servem o patrão para receber recompensa”, pensaram: “O quê? Vamos cumprir mitsvot nesse mundo e não vamos receber nada?” Largaram então o judaísmo e fundaram suas próprias seitas religiosas. Por terem interpretado errado o que seu rabino dissera, revoltaram-se, afastaram-se de tudo e criaram grupos que depois trouxeram muitos sofrimentos ao Povo Judeu (os baytossim e tsedokim, saduceus, rejeitavam a Torá Oral transmitida pelos rabinos e aceitavam somente uma interpretação bem mais vaga e bem menos exigente da Torá Escrita. Na verdade, Antignos nunca disse que não há recompensa, e sim que não devemos trabalhar a D’us por causa da recompensa. Mas é claro que existe uma recompensa por servi-Lo.

Mas se esse trecho pode causar enganos, por que a Mishná resolveu trazê-lo? Talvez fosse melhor nem citá-lo! Muitas pessoas irão ler e podem acabar se enganando também!

Para responder a esta questão, é importante citar as palavras do Rashi, Rabi Shelomô Yitschaki, o grande comentarista da Torá (França, 1040-1104), que ensinou logo no início de seu comentário o seguinte: “Harotsê lit’ót, yit’ê” - todo aquele que quer errar, tem a opção de acabar errando. A pessoa que estuda à procura de erros, vai supor que os encontrou, pois na Torá há muitas frases ambíguas, como no trecho de Bereshit que diz “façamos o homem”. Alguém poderia pensar que havia alguns deuses que criaram o homem; que D’us, chás veshalom, tem sócios! Mas mesmo assim a Torá não deixou de usar esta linguagem dúbia! Daqui vemos que não é na frase que está o problema e sim em quem procura achar erros. A Mishná preocupa-se em nos ensinar a verdade e como devemos agir, mesmo que quem quiser pode se enganar!

Por que a Mishná usa frases repetidas? Se já disse “Não sejam como os escravos que trabalham para o patrão com o intuito de receber recompensa”, por que precisa citar “mas sim como os escravos que trabalham não pensando na recompensa”? A primeira frase já seria suficiente!

Explicam os comentaristas do Pirkê Avot que é para mostrar que não é um pecado servir a D’us pensando na recompensa. Se as opções disponíveis forem servi-Lo pensando em recompensas ou não servi-Lo de maneira alguma, é claro que é melhor servir de olho na premiação! Dizem os nossos sábios na Guemará (Nazir 23b): “A pessoa deve servir a D’us ‘shelô lishmáh’ - por interesse próprio - ‘shemitoch shelô lishmáh, bá lishmáh’ - pois através de servir por interesse próprio, a pessoa chegará a servir a D’us com intenção pura”. O Rabino Dan Segal Shelita (Israel) explica que, da linguagem desta guemará, aprendemos que sempre que a pessoa começa cumprindo algo, é por algum interesse próprio ou para o seu lucro. Entretanto, começando assim, ela vai chegar futuramente a fazer esta mesma coisa com vontade pura, por amor a D’us e com todo o coração. E realmente não existe outro caminho! Para poder chegar a cumprir a Torá com dedicação pura e completa a D’us, é necessário começarmos por motivos próprios ou egoístas. Vemos daqui que podemos trabalhar a D’us pensando na recompensa, mas o ponto ideal a se chegar é servi-Lo porque assim queremos e gostamos, por amor a D’us!

De tudo que vimos até agora, parece que o objetivo ensinado por esta mishná é que devemos almejar um dia servir a D’us não pensando na recompensa. Entretanto, o Rabino Chayim de Volojin afirmou o contrário: Nosso objetivo é trabalhar sim para receber recompensa! Mas como pode ser, se acabamos de ver na mishná o oposto!

Para responder a esta pergunta, o Rabino Chayim cita a famosa explicação, também abordada no livro do Ramchal, de que o único motivo pelo qual D’us criou o mundo foi para beneficiar Benê Yisrael por cumprirem a Torá e suas mitsvot. Ou seja: D’us criou o mundo inteiro só para poder nos recompensar! Ao cumprirmos as mitsvot, estamos cumprindo o objetivo do mundo: receber a recompensa!

Para elucidar esta aparente contradição, explica o Rabino Chayim de Volojin que neste contexto existem três níveis. O primeiro e mais baixo é servir a D’us porque queremos a recompensa para nós mesmos, visando somente nosso lucro. O segundo é trabalhar não pensando na recompensa, mas só por hacarat hatov (reconhecer o bem que D’us faz conosco) ou porque assim D’us ordenou. O terceiro e mais elevado nível é servir a D’us querendo receber a recompensa, mas com a intenção de que é isto que Ele quer; foi por isso que Ele criou o mundo e isto Lhe traz náchat - satisfação! Assim, cumprimos as mitsvot com intenção de dar oportunidade para D’us nos recompensar, pois essa é Sua vontade.

Como saber se, ao cumprirmos a Torá visando receber recompensa, fazemos por motivos egoístas ou porque para D’us é bom assim? O Rabino Chayim continua explicando que devemos analisar a seguinte hipótese: Se alguém nos pedisse para fazer determinada mitsvá afirmando que a recompensa iria para fulano, nós a faríamos? Caso mesmo assim a cumpríssemos, eis a prova de que a estamos fazendo com intenção pura, para que D’us mande recompensa a este mundo como é Sua vontade, não importando para quem.

Conta-se que muitos tsadikim, pessoas pias e justas, realmente cumpriam as mitsvot para que D’us pudesse enviar recompensa para este mundo, mesmo que outro recebesse por seu esforço.

“E tenham o temor aos Céus sobre vocês”

Acabamos de ver que temos de servir a D’us por ahavá (amor), pois gostamos Dele, e não por temor (do castigo)! Então, por que a mishná conclui dizendo “E tenham o temor aos Céus sobre vocês”?

Explicam os comentaristas do Pirkê Avot que em relação a cumprir as mitsvot, devemos cumpri-las por amor a D’us. De tanto que queremos agradá-Lo e devemos a Ele, cumpriremos Suas palavras de bom grado. Entretanto, ao defrontarmo-nos com um teste enviado por D’us, é muito difícil vencê-lo e não pecar se não tivermos temor aos Céus. Muitas vezes, a única coisa que nos impede de pecar é o medo do castigo, do inferno.

Em resumo: em relação ao cumprimento da Torá e suas mitsvot, não há dúvida que deve ser feito por ahavá (amor) a D’us. Porém, quanto a não transgredi-la e cair no pecado, precisamos de yir’at Shamáyim, temor aos Céus, sobre nós, pois sem isso é muito difícil não tropeçar e cair.

Há mais um motivo para esta conclusão aparentemente “deslocada” da mishná. Antigamente falava-se muito sobre o castigo daquele que peca: o Guehinom (inferno). Hoje em dia, os rabinos recomendam que se deve enfatizar mais o lado positivo: hacarat hatov, a lógica e a ética da Torá, suas recompensas, e não falar tanto do inferno, do castigo, e a idéia negativa do medo. No entanto, esta situação chegou a tal ponto que as crianças hoje estão crescendo sem saber sobre o inferno. Devemos saber que sim existe o inferno e aquele que pecar terá seu castigo lá. Por isso a mishná, em seu final, diz para termos temor aos Céus sobre nós, para sabermos que existe o castigo, o inferno, e que devemos temê-lo.