Hessed
Rabino Yissachar Frand
Sobre o Autor

O nome Yissachar Frand tem se tornado sinônimo de eloquência, humor, paixão, sensibilidade e sabedoria da Torá. Suas palestras e CDs são entusiasticamente aguardados e bem-vindos em todo o mundo, de Melbourne (Austrália) a Johanesburgo (África do Sul), de São Paulo a Jerusalém, passando por incontáveis outros pontos.

Nascido em Seattle (EUA) e ensinando na Yeshivá Ner Israel, em Baltimore, EUA, o rabino Frand transmite ensinamentos incisivos e relevantes, grande sabedoria e um entendimento intuitivo e claro para analisarmos o nosso dia-a-dia e nossas aspirações pelo prisma da Torá. Todos querem viver vidas com significado e conteúdo. O rabino Frand nos inspira a nos elevarmos e nos aperfeiçoarmos como pessoas. Se ele tem sucesso? Pergunte a algum dos milhares de pessoas que comparecem às suas palestras ou que fazem de seus CDs parte indispensável de suas vidas.

Raramente uma pessoa consegue capturar a atenção de tantos tipos diferentes de audiência. Nesta tradução vocês terão a oportunidade de conhecer seu estilo, balanceando a vida moderna contemporânea com os eternos valores da Torá. Como uma sinfonia nas mãos de um virtuoso, estes temas, tão banais e ao mesmo tempo básicos em nossa complexa sociedade, tomam forma e se tornam claros através da mente e da caneta do rabino Frand.

Boa leitura!

O Mundo Conturbado em que Vivemos

Vivemos em um mundo muito conturbado. Desde o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 aos EUA, o mundo mudou tremendamente.

É como se o mundo de então fosse inocente: sentíamo-nos seguros e protegidos, como se fôssemos invulneráveis. Mas este sentimento se foi. Constantemente somos relembrados de que o mundo ficou mais inseguro e violento, seja ao pegar um avião e ter que passar por medidas extras de proteção, seja pela mídia que nos informa dos ataques terroristas em diversas partes do mundo ou pela vida violenta nas grandes cidades.

A pergunta que todos se fazem é a seguinte: o que pode realmente nos proteger? O que podemos fazer para nos proteger?

Um escudo?

Nossos Sábios, em diversos locais da Torá, já nos ensinaram o que podemos fazer para nos proteger dos perigos que estão soltos pelo mundo. O Talmud cita o versículo constante no livro do Profeta Yeshaiau (Isaías): “E coloquei Minhas palavras em sua boca e com a sombra de Minha mão Eu o cobri (51:16)” e explica: As palavras “E coloquei Minhas palavras em sua boca” referem-se ao estudo da Torá. Já as palavras “E com a sombra de Minha mão Eu o cobri”, onde o Todo-Poderoso afirma que ‘Sob a sombra de Sua mão Ele cobriu e protegeu o Povo de Israel’, trata sobre Guemilut Hassadim, praticar o bem e ser bom com as demais pessoas. E continua o Talmud: “este versículo vem nos ensinar que todo aquele que estuda Torá e pratica atos de bondade tem o mérito de receber a proteção direta do Todo-Poderoso”.

O Chafets Haim, Rabino Ysrael Meir Kagan (Polônia, 1839-1933), em seu livro ‘Ahavat Hessed’, escreveu que qualquer um pode ter certeza da proteção pessoal de D’us se estudar Torá e agir com bondade. Não é uma promessa maravilhosa? Ao ouvirmos que podemos conseguir uma proteção Divina para nossas vidas, sentimo-nos mais confiantes. Mas por que isto? A resposta é: Porque já somos, naturalmente, uma nação que excede em atos de bondade, favores, generosidade e magnanimidade. Sendo assim, ao ficarmos sabendo que a prática da bondade é o escudo protetor que D’us nos oferece, sentimo-nos mais confiantes.

Entretanto, há algo faltando neste quadro. A verdade é que D’us quer de nós não apenas Hessed (atos de bondade), mas Ahavat Hessed (amar a prática de atos de bondade). Existe uma diferença entre praticar atos de bondade e amar fazê-los. É isto que o Profeta Mihá nos transmitiu em sua profecia (6,8): “Vou lhes informar, Povo de Israel, o que é bom para vocês e o que o Todo-Poderoso deseja de vocês: que façam justiça e amem a bondade”.

O Chafets Haim explica em seu livro ‘Ahavat Hessed’ que o Profeta aparentemente está nos transmitindo algo novo: “Senhoras e senhores: Tenho algo novo para lhes contar. O quê? Façam justiça e amem a bondade”. Pergunta o Chafets Haim: “Que há de novidade neste versículo? Já não sabemos, a partir do restante da Torá, que devemos praticar a justiça e agir com bondade? Qual a nova informação que o Profeta veio compartilhar conosco?” A resposta é a seguinte: “O Profeta veio nos revelar um assunto importante e novo, único, sobre este versículo. Ele veio nos informar que, infelizmente, a maioria de nós tropeça neste assunto. Não é o suficiente praticar atos de bondade, mas sim que amemos fazer bondade, que corramos atrás de oportunidades de ajudar o próximo, que desejemos beneficiar os demais como se fosse uma oportunidade de ouro e imperdível”.

É isto que está escrito no versículo: ‘Façam justiça’ – é o suficiente que façamos justiça. Mas quando tratamos de atos de bondade, D’us exige mais de nós: ‘Amem a bondade’ ou seja, queiram praticá-la, corram atrás de oportunidades e realmente beneficiem o próximo. Apenas praticá-la não é o suficiente.

A Diferença entre ‘Hessed’ e ‘Ahavat Hessed’

‘Hessed’ e ‘Ahavat Hessed’ são duas coisas distintas. Deixe-me lhes mostrar um cenário onde podemos enxergar a diferença entre ‘Hessed’ e ‘Ahavat Hessed’:

Domingo de manhã, você está tranqüilo, sentado na poltrona de sua sala e a campainha toca. Um enviado de alguma instituição (filantrópica, escola, etc.) vem lhe pedir um donativo para sua causa. Você faz um cheque e ele vai embora. Quinze minutos depois, outro toque na campainha, outro enviado e mais um cheque. E assim vai passando a manhã: mais um enviado e mais um cheque, outro enviado e mais um cheque, a manhã inteira. Finalmente você sai de casa para resolver algumas coisas. Uma hora e pouco depois você está retornando para casa e, ao virar a esquina de seu quarteirão, vê dois enviados partindo de sua casa, pois não o encontraram lá. Você pensa consigo mesmo: “Obrigado D’us! Hoje é meu dia de sorte: eu perdi aqueles dois!”

Este é um exemplo de Hessed. É verdade: você praticou muitos atos de bondade hoje, fez caridade a muitos necessitados, mas conseguiu não dar mais dois cheques.

Agora vamos entender o que quer dizer ‘Ahavat Hessed’, amar a prática de atos de bondade. Certa vez, um homem foi conversar com o Rabino Avraham Pam Zt”l (EUA, 1913 - 2001), ex-diretor da Yeshivá Torá VaDaat, em Nova York. Ele explicou ao Rabino a causa meritória pela qual estava coletando dinheiro e pediu ao Rabino se ele poderia contatar seus próprios alunos para que contribuíssem generosamente com a sua causa.

O Rabino olhou para o homem e falou: “Eu adoraria ajudá-lo, é uma causa maravilhosa, mas não posso fazê-lo. Há poucas semanas eu contatei estas mesmas pessoas para que contribuíssem para outra causa, outra instituição, e não posso lhes solicitar tantas vezes. Eu realmente sinto muitíssimo, mas não posso ajudá-lo”. O homem foi embora.

Dez minutos depois, um aluno do Rabino Pam entrou em seu escritório e viu o Rabino sentado à mesa, com uma relação de cartões de visita em sua mão, repassando um por um. E lágrimas estavam rolando pela face do Rabino. O aluno perguntou: “O que há de tão depressivo na leitura de cartões de visita?” O Rabino lhe respondeu: “Eu acabei de falar para aquele homem que não podia ajudá-lo. Vim verificar meus cartões para checar se havia alguém que ainda pudesse contatar, mas realmente não posso. É por isto que estou chorando”.

Isto é ‘Ahavat Hessed’! É isto que o Profeta Mihá queria de nós: que procurássemos ao máximo ajudar o próximo, a um ponto tal que lamentaríamos as oportunidades em que não o conseguíssemos. É isto que o Profeta pediu de nós!

Ele sim, mas eu não!

Ao lermos uma história como esta, logo exclamamos: “É verdade, mas este era o Rabino Pam, um grande Tsadik (piedoso e correto), uma pessoa especial e um dos líderes religiosos do Povo Judeu nesta geração. Todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo ou deconversar com ele sabem que pessoa maravilhosa era ele. Mas eu não sou assim: eu sou uma pessoa simples. Aquele nível está fora do meu alcance!” Entretanto, há aqui um grande equívoco. Um dos axiomas do Judaísmo é que D’us não exige de um indivíduo algo que ele(a) não consegue fazer. Leiam novamente as palavras do Profeta Mihá: “Vou lhes informar, Povo de Israel, o que é bom para vocês e o que o Todo-Poderoso deseja de vocês: façam justiça e amem a bondade”.

O Rabino Samson Rafael Hirsch (Alemanha, 1808-1888) escreveu que a Torá, ao utilizar a palavra ‘desejar’, está implicando algo que existe, uma capacidade existente em nós. Se o Todo-Poderoso nos falou através do Profeta Mihá as palavras: “o que o Todo-Poderoso deseja de vocês...”, então Ele está nos afirmando que a capacidade de Ahavat Hessed (amar a bondade) reside em cada um de nós. Portanto, devemos investigar e procurar até encontrarmos esta capacidade. Mas saibamos de algo essencial: Ela está aí, dentro de cada um de nós. Tanto dentro dos ‘Rabinos Pams’ como das pessoas simples.

Deixem-me contar-lhes uma história sobre um Judeu simples e o grande Rabino Simcha Bunim de Parsischa (Polônia, 1765-1827), mais conhecido como Rebbe Rav Bunim. Certa vez, o Rebbe Rav Bunim estava viajando e parou na hospedaria deste homem. O homem serviu uma refeição ao Rabino e começou a relatar sua longa lista de sofrimentos: como os negócios estavam indo mal, como os clientes desapareceram e como ele estava à beira da falência.

De repente, uma batida à porta. O homem pensa: “Um cliente!” Ele vai até a porta e lá está parado um homem, naquela noite fria e chuvosa. O homem fala para o dono da hospedaria: “Por gentileza, peço-lhe um favor: Estou gelado, cansado e com fome. Preciso de um lugar para ficar e algo para comer. Posso comer e dormir na sua hospedaria?” O dono respondeu: “Sim!”

“Porém, há um detalhe”, disse o homem. “Eu não tenho dinheiro. Estou lhe pedindo um grande favor: deixe-me ficar de graça!”

O dono da hospedaria pensa consigo mesmo: “Finalmente um cliente vivo e ele não pode pagar”.

Ele então oferece uma cadeira ao homem e lhe serve uma refeição. Sentado na mesma sala, o Rabino Rebbe Bunim presenciava o desenrolar da cena.

Finalmente o homem diz: “Por gentileza, mais um grande favor: Estou com muito frio, meus ossos estão doendo de frio. Por favor, o senhor poderia me dar um copo de vodka para me aquecer?”

O estalajadeiro ouviu incrédulo o pedido do homem, mas respondeu: “Ok, vou lhe dar um copo de vodka”.

O dono da hospedaria vai até o barril, enche um copo com vodka e atira a vodka no chão. Enche novamente o copo com vodka e a atira no chão. E novamente: uma terceira e uma quarta vez, até que, finalmente, ele enche o copo e exclama: “Agora!” E dá o copo ao homem sentado à mesa.

O Rabino, que estava assistindo toda a cena, chamou o dono da hospedaria e perguntou-lhe: “Por que você jogou os primeiros quatro copos de vodka no chão? Você me reclamou que é muito pobre. Jogar vodka no chão não vai ajudar a melhorar sua situação!”

O dono da hospedaria respondeu ao Rabino Rebbe Bunim: “Eu fiz isto por que sabia que tinha uma oportunidade de ouro aqui: eu estava fazendo Hessed (bondade) para aquele homem, mas quando enchi o primeiro copo, foi com raiva, com ressentimento e não com um espírito de generosidade. E falei para mim mesmo: ‘Você tem uma oportunidade de fazer Hessed agora e vai atirá-la pelos ares? Você vai desperdiçá-la porque não consegue dar um copo de vodka de todo o coração e sim com um sentimento mesquinho? ’ Então joguei a primeira vodka no chão e pensei: ‘Não, foi com má vontade! ’ O segundo copo: ‘Não, ainda há ressentimento!’ O terceiro copo: ‘Ainda não consegui’, o mesmo com o quarto, até que no quinto copo exclamei: ‘Agora! Agora sim um copo de vodka! Agora sim com Hessed, com Ahavat Hessed! Agora consegui!’”

Esta não é uma história sobre o grande Rabino Rebbe Bunim, mas sobre um homem simples, o dono de uma hospedaria. Um dono de hospedaria que poderia ser eu ou vocês. Mas ele nos revelou que tinha dentro de si a mesma capacidade que existe dentro de cada um de nós: a capacidade de Ahavat Hessed.

A primeira Vez que Ahavat Hessed Aparece na Torá

Ahavat Hessed é única e é diferente da maioria das outras mitsvót (mandamentos da Torá). A primeira vez que a Torá nos conta sobre o amor pela prática de atos de bondade, foi com nosso Patriarca Avraham. Avraham estava com 99 anos de idade e acabara de fazer seu próprio Brit Milá. O Todo-Poderoso teve misericórdia e não quis incomodar Avraham, este homem generoso, cuja casa estava aberta a qualquer passante. O Todo-Poderoso não queria que Avraham se desgastasse recepcionando e servindo novas visitas e, então, fez com que aquele dia fosse extremamente quente. Em conseqüência, não havia pessoas andando pelas ruas.

Porém, o que aconteceu? Nosso Patriarca Avraham ficou extremamente chateado por não poder receber ninguém. O Todo-Poderoso então lhe proveu, milagrosamente, três convidados: três anjos em forma de seres humanos. Avraham logo correu para servir-lhes comida e bebida.

Gostaria de lhes fazer uma pergunta: Não seria plenamente compreensível se Avraham dissesse: ‘Ouçam: Estou doente e cansado. Acabei de me submeter a uma circuncisão e preciso de alguns dias de descanso’? Todos nós sabemos como nos sentimos quando exclamamos: ‘Preciso de uma semana de férias!’ Todos conhecem aquele sentimento proveniente de uma semana cansativa, em que muitas coisas deram erradas. Mais ainda, quando já é quinta-feira à noite, lembramo-nos que prometemos a alguns amigos que iríamos recebê-los para a refeição de Shabat.

Logo começamos a preparar (ou ajudar a preparar a janta), apesar de estarmos extremamente cansados, pois, afinal de contas, prometemos que iríamos receber aquelas visitas. De repente, o telefone toca. Você atende e é aquela visita para o Shabat. Ele diz: “Por favor, me desculpe. Sinto muitíssimo, mas temos que cancelar o jantar esta semana!” Você então desliga o telefone e grita: “Obrigado, meu D’us! Eu precisava disto!”

Mas nosso Patriarca Avraham não era assim; estava triste por não ter convidados.

Mas por que ele deveria estar chateado? Alguém se sentiria mal por não poder fazer Kidush numa quarta-feira? Se hoje não é Shabat, não fazemos Kidush! Se hoje não é Pessach, não comemos Matsót! Se hoje não é Sucót, não sentamos nem comemos na Sucá! Se fosse Shabat, eu deveria fazer Kidush. Se fosse Pessach, deveria comer Matsót, se fosse Sucót, deveria me sentar na Sucá, e se houvesse convidados, então eu os serviria. Mas se não há convidados, não tenho que servi-los! Por que então Avraham estava tão chateado?

O Rabino Moshe Feinstein (Bielorússia e EUA, 1895-1986) explicou que daqui vemos como o Hessed é diferente. O Kidush só pode ser feito no Shabat, mas o Hessed é diferente. O motivo da diferença é que Hessed não é para os demais e sim para nós mesmos. Este é o aspecto único na prática de atos de bondade. A prática do Hessed faz parte de nossa natureza: nós, como seres humanos, precisamos dar e compartilhar. Está em nossa própria natureza.

Ajudar os Demais faz parte
da Natureza Humana

Vamos explicar melhor este conceito. Muitas pessoas pensam que se alguém precisa de ajuda ou dinheiro, por exemplo, devemos então ajudá-lo. Mas este pensamento está correto apenas em parte.

A verdade e a ordem correta dos fatos é: “Eu preciso dar e, portanto, alguém necessita de algo!”

Essa é uma afirmação muito forte, mas através dela poderemos entender uma das ‘calamidades’ que assola o mundo hoje: a pobreza. Ela está ocorrendo para que as pessoas ajudem e dêem umas às outras.

O Talmud já nos explica sobre este assunto: “Mais do que aquele que dá caridade faz pelo pobre, o pobre faz pelo doador”. O motivo? Porque precisamos dar, precisamos ser bons e verdadeiros doadores; essa é a essência do Hessed.

Nossas almas precisam doar da mesma maneira que nossos corpos precisam se alimentar. Quando acordamos de manhã com fome, logo nos perguntamos: “O que há para o café da manhã?” Na hora do almoço: “O que vou comer agora?” e assim por diante. Fazemos isto diária e constantemente, pois nossos corpos precisam ser nutridos.

Nossa alma, por sua vez, precisa dar. Devemos, então, ao acordar perguntar: “Como posso ajudar alguém hoje? Quem posso ajudar?”

E, saibamos todos, que este é o motivo pelo qual fomos colocados neste mundo. O Todo-Poderoso pegou nossas almas e as enviou para este mundo e nos ordenou: “Aperfeiçoem-se! Refinem seu caráter! Sigam os passos do Criador para tentarem se igualar a ele em suas características pessoais, para se aproximarem Dele!” A prática de atos de bondade é a maneira de nos elevarmos espiritualmente e de nos aproximarmos de D’us.

O Todo-Poderoso é a essência da bondade e por isso criou este mundo, porque quis nos beneficiar de todas as maneiras possíveis. E Ele disse: “A melhor e mais preciosa coisa que uma alma pode ter é viver neste mundo e doar, ajudar, imitar a característica de bondade e generosidade de D’us”.

Somente assim conseguiremos uma real proximidade com D’us, que é justamente o que nossas almas anseiam e precisam. A maneira de formarmos uma conexão forte com D’us é dando e ajudando os demais.

Pensando nos Demais

Trata-se de um trabalho para a vida inteira. Viemos para este mundo como pequenos bebês que pensam apenas em si mesmos: desejam ser alimentados, limpos e cuidados. Eles nos acordam várias vezes no meio da noite sem se importar se estamos com sono ou não. O bebê é um ser centrado em si próprio. Existe um provérbio Ydish que diz: ‘Um bebê vem para este mundo com sua mão fechada, como se dissesse: ‘Eu quero tudo, quero sempre mais’’. Viemos para este mundo como ‘tomadores’. A tarefa mais difícil e importante de todos os seres humanos é transformar-se e tornar-se um ‘doador’ ao invés de um ‘tomador’.

Talvez seja isto, então, o significado da expressão que pronunciamos no Brit Milá de cada menino: “Este é o pequeno, porém grande será”. Não estamos nos referindo meramente à estatura física, mas estamos dizendo ao bebê: ‘Hoje você é pequeno: centrado apenas em si mesmo e com instintos egoístas. Porém, torne-se alguém grande, grande conforme as definições da Torá. O que é uma grande pessoa segundo as definições da Torá? Pode ser alguém com grande erudição ou bastante temente a D’us. Mas sabem o que todos têm em comum? Todas as pessoas que foram ou são grandes pelo conceito da Torá pensam nos demais, e esta é a verdadeira medida da grandeza de uma pessoa.

A Torá nos relata (Êxodos 2:11): “Moshe cresceu e saiu ao encontro de seus irmãos e observou o sofrimento deles”. Moshe, criado no palácio do Faraó, poderia continuar desfrutando de todo o luxo reservado aos governantes do Egito sem se importar com o fato de seu Povo estar sendo escravizado. Mas saiu do palácio e foi tentar aliviar o sofrimento de seus irmãos. Isto é o que a Torá quis nos dizer com “Moshe cresceu”.

E é isto que falamos àquele pequeno bebê: “Você hoje é pequeno e será assim por cinco, dez, quinze ou vinte anos mas, em algum ponto de sua vida, “Este é o pequeno, mas grande será!”. Não pense mais apenas em si mesmo, não seja mais o centro do mundo, mas sim um doador e não um tomador! E quanto mais você der de si mesmo, maior você será!”

Gostaria de lhes contar uma história de tirar o fôlego. É uma história sobre Guedalia Moshe Goldman que se tornaria o Rebbe de Zvil. Durante a 2ª. Guerra Mundial, ele estava preso em um campo de trabalho forçado, trabalhando o dia inteiro em tarefas extremamente extenuantes. Um dia ele foi chamado ao escritório do comandante. O comandante havia mandado chamá-lo e a outro prisioneiro e lhes falou: “Vocês estão livres, podem ir embora. Assinem este papel e podem sair”.

O único problema é que era Shabat. Neste instante, o futuro Rebbe enfrentava um dilema: “Será que posso assinar o papel no Shabat? É lógico que posso: num caso de perigo de vida pode-se sim profanar o Shabat; por outro lado, talvez não: não se trata agora de um caso de vida ou morte. Se não sair agora, provavelmente não irei morrer. Talvez tenha que ficar aqui mais dois ou até quatro anos, mas no final serei libertado”.

E assim ele falou para o comandante: “Eu não vou assinar o papel. Hoje é Shabat”. O comandante respondeu: “Não há problema: Você não assina e ficará aqui até apodrecer!”

O comandante virou-se para o outro Judeu, um senhor de idade, já doente e disse: “Assine o papel e estará livre!” O homem respondeu: “Não posso assinar, hoje é Shabat”.

Neste instante, Guedalia Moshe Goldman levantou-se e gritou: “Eu assino por ele! Deixem-no ir!”

O comandante falou: “Você está louco? Você acabou de falar que não assinaria porque hoje é Shabat. Como pode não assinar para si próprio e assinar por ele?”

O futuro Rebbe respondeu: “Eu sou mais jovem, mais saudável e mais forte que ele. Se continuar aqui, provavelmente não irei morrer. Mas este senhor é bem mais velho, está fraco e doente: para ele é um caso de vida ou morte. E eu assino o papel para que ele possa ser liberado!”

O comandante ficou tão chocado com este comportamento tão altruísta, um incrível ato de total abnegação, que falou: “Os dois estão livres!”

Esta é uma pessoa grande, um ‘doador’ e não um ‘tomador’. É alguém que se comporta à imagem do Todo-Poderoso e está fortemente unido com o Criador. Alguém que ‘doa’ e não ‘toma’.

Um Escudo contra o Ressentimento

Esta talvez seja a maior mensagem que aprendemos até aqui: Se começarmos a enxergar o Hessed sob este prisma, na realidade estaremos fazendo mais por nós mesmos do que pela pessoa que estamos ajudando.

Gostaria também de lhes mostrar outra grande vantagem de encarar o Hessed como algo que beneficia mais o ‘doador’ do que o ‘tomador’. Ao praticar atos de bondade sem esperar agradecimentos, mas sim para nos fortalecermos como ‘doadores’, estaremos nos protegendo com um dos mais poderosos ‘escudos’ contra um dos maiores perigos que sofrem aqueles que praticam atos de bondade: o ressentimento.

Quantas vezes já não fomos legais, bondosos e agradáveis com outras pessoas e estas não demonstraram nenhum apreço em troca? Às vezes é até pior: elas retribuem com o mal ao bem que lhes fizemos. E aí podemos acabar falando algo desagradável como: “Vejam o que fiz por esta pessoa e olhem o que recebi em troca. Nem mesmo um ‘obrigado’!”

Ao entendermos que o Hessed que fazemos pelos outros é para o nosso benefício e não para eles, nunca mais sentiremos ressentimento. E é isto o que a Torá vem nos ensinar: o ‘doador’ sempre recebe mais do que o ‘tomador’.

Vou lhes trazer um exemplo disto. Certo dia você percebe um vizinho novo que mora perto de sua casa e o cumprimenta: “Olá, como vai? Há quanto tempo mora por aqui? Aonde você trabalha?” E descobre que a pessoa trabalha perto de você.

De repente ele então lhe pergunta: “Você se importa de me dar carona?” E você responde: “Lógico que não!”, pensando: “Eu sou uma pessoa que pratica Hessed, claro que vou levá-lo!”.

E assim você começa a levá-lo, semana após semana, mês após mês. Certo dia você acaba se perguntando: “Por que este sujeito nunca se oferece para me levar? Será que não ouviu falar sobre rodízio de carona? Eu o levo dia após dia, há muitos meses, e ele nem se oferece? Não só não se oferece para ir com o carro dele, como também não se oferece para pagar a gasolina ou os pedágios”!

Conforme os meses vão se passando, você vai sentindo cada vez mais ressentimento: “Aquele vizinho está literalmente me ‘sugando’”. Mas aí você diz para si mesmo: “Já sei o que acontecerá: Purim está chegando e é isto o que ele está esperando. Ele me dará um presente especial como nunca se deu numa festa de Purim! Talvez até um carro novo!”

Purim então chega e ele bate em sua porta. Em sua mão, adivinhem o quê? Um pedaço de bolo e uma lata de refrigerante. Você bate a porta, vira-se para sua esposa e fala: “Que desaforado! Todos os dias eu o levo em meu carro, não cobro a gasolina nem os pedágios, e é isto que ele me dá? Uma lata de refrigerante?”

Aí a esposa lhe responde: “É sua culpa, pois você é um coitado, um pateta! Você sempre faz isto pelos outros e não se importa com você. Aí todos tiram vantagem de você!”

Não, não, meu amigo, saiba que você não é um coitado e nem um pateta. Você é uma pessoa que faz Hessed e absolutamente ninguém está tirando vantagem de você. Aquele seu vizinho deveria ser um ‘mentsh’ (uma pessoa digna), mas isto são outros quinhentos. Entretanto você, com certeza, não é um coitado!

Você terá seu Olam HaBá (Mundo Vindouro), pois praticou Hessed, pois imitou D’us ao ajudar um outro ser humano. Não é verdade que D’us ajuda e mantém todos os seres vivos sem receber nada em troca? Além disto, você se aproximou mais do Todo-Poderoso. Sua alma se nutriu e se elevou. Com certeza você não é um coitado e nem um fracassado! Você absolutamente não saiu perdendo!

O Chafets Haim, talvez percebendo as discussões que acabariam ocorrendo sobre como fazer para estar próximo a D’us e sobre como chegarmos à nossa plenitude, devotou vários capítulos em seu livro ‘Ahavat Hessed’ sobre todas as vantagens e recompensas que receberão aqueles que praticam o Hessed. O Chafets Haim, a partir de fontes bíblicas, escreve que, pelo mérito dos atos de bondade, as chuvas cairão na época propícia e a pessoa que fizer atos de bondade terá filhos maravilhosos, assim como também será salva de seus maus instintos (Yetser HaRá). Além disto, se um dia precisar de auxílio, será ajudada pelo mérito da ajuda que deu aos demais.

O Chafets Haim cita o livro ‘Tana Devei Eliahu’, escrito pelo Profeta Eliahu. Sobre o versículo “Ubau Eleiha kol habrachot haele veisiguha ki tishma bekol Hashem Elokeiha - Todas as bênçãos que a Torá menciona recairão sobre vocês, se ouvirem a voz do Todo-Poderoso”, o autor do livro ‘Tana Devei Eliahu’ pergunta: “Por que as pessoas só receberão as bênçãos contidas na Torá se ouvirem as palavras de D’us?” Responde o ‘Tana Devei Eliahu’ que uma das características de D’us é que Ele é extremamente bondoso e altruísta.

Com isto, o Chafets Haim quer nos ensinar que a ‘mãe’ de todas as bondades é o Hessed. Nós praticamos atos de bondade e D’us nos paga de volta.

O Chafets Haim entendia bem a psique humana e, para que entendêssemos melhor este conceito, trouxe um exemplo sobre as apostas na loteria. Ele sabia que as pessoas respondem bem ao estímulo de loterias. Vemos isto muitas vezes.

Diga-se de passagem, esta é única maneira pela qual consigo entender o fenômeno dos prêmios acumulados nas loterias. Em muitos lugares do mundo, semana após semana, quando não há nenhum ganhador na loteria, o prêmio vai se acumulando e se acumulando até que chega a dezenas de milhões de reais. Quando isto acontece, invariavelmente, as pessoas formam filas enormes à frente das casas lotéricas para poderem fazer suas apostas.

Há uma coisa que não consigo entender nestas pessoas. Elas poderiam comprar um bilhete de loteria ou de suas diversas versões em qualquer semana do ano, para um premio de, digamos, 10 milhões de reais. Mas, aparentemente, este prêmio não é o suficiente para a maioria das pessoas.

Eu, pessoalmente, viveria muito bem com 10 milhões de reais!

Entretanto, todas aquelas pessoas que ficam horas na fila para comprar um bilhete para um prêmio de, digamos, mais de 100 milhões de reais, inspiram mais pessoas a fazerem o mesmo.

- “Dez milhões de reais, não, obrigado. Cem milhões? Isto sim me interessa!”

O porquê disto? Porque as pessoas acreditam que só o prêmio acumulado lhes proporcionará ‘TODAS’ as oportunidades de comprar e gastar como desejarem, e que talvez os 10 milhões não fossem suficientes...

Hessed é esta loteria, este prêmio acumulado. É isto, explica o Chafets Haim, o que quis dizer o versículo: “Todas as bênçãos que a Torá menciona recairão sobre você”. Serão Todas mesmo, numa quantia inimaginável.

Recebendo um Tratamento Diferenciado

Gostaria de lhes trazer mais um fator para nos motivar e incentivar neste caminho: A pessoa que pratica o Hessed é tratada de forma diferenciada pelo Todo-Poderoso. D’us praticamente utiliza um ‘novo’ código de Leis para quem pratica atos de bondade.

Certa vez uma pessoa foi conversar com o Chafets Haim e lhe pediu uma Berachá (bênção) para ter sucesso em seus negócios. O Rabino lhe perguntou qual seu ramo de atividade e o homem respondeu: “Eu vendo botas para o exército do Czar. Todo mundo pensa que é um grande negócio vender para eles, um cliente tão grande.” O Chafets Haim perguntou: “E qual o problema de vender para eles?” “O senhor não sabe como eles são: eu entrego as botas e eles chamam um inspetor para verificar toda a mercadoria. Aí ele rejeita uma, fala que a outra está com defeito, não aprova mais outra e assim por diante, passando por todo o lote e acaba rejeitando 50% das botas!” O Rabino lhe perguntou: “E o que você faz então?” “Kabar”, respondeu o homem. “Kabar?” perguntou o Rabino. “Sim, Kabar, uma ‘ajuda de custo’. O inspetor me pede isso para poder liberar toda a mercadoria!”.

O Chafets Haim lhe falou: “Você tem problemas com botas hoje? Um dia teremos problemas com nossas Mitsvót (os mandamentos da Torá) que cumprimos. Chegaremos um dia lá no Céu pensando que estamos bem porque fomos pessoas boas, praticantes e corretas durante toda nossa vida na Terra. Rezamos milhares de vezes, fizemos dezenas de milhares de bênçãos, estudamos horas intermináveis e fizemos centenas de milhares, se não milhões de atos bons! O Todo-Poderoso com certeza ficará feliz com nosso desempenho”.

“Entretanto, há um inspetor lá nos Céus também. Ele olhará para nossas rezas e dirá: ‘Isto lá é reza? Rezar toda a prece da manhã em 6 minutos? E as bênçãos antes dos alimentos, em que você apenas murmurou as últimas três palavras porque estava com tanta vontade de comer ou beber? Sinto muito, esta reza foi rejeitada, esta bênção desqualificada, as horas de estudo desconsideradas, etc.”

“Porém”, falou o Chafets Haim, “existe um Kabar lá nos Céus, uma maneira de fazer com que o Todo-Poderoso olhe de maneira diferente para nós. Este Kabar chama-se Hessed. Poderemos ser julgados de maneira diferente. Há muitos ‘pequenos defeitos’ que D’us pode relevar se pudermos ‘lubrificar as engrenagens’ também”. Vemos então como o Hessed é algo maravilhoso, tanto neste Mundo como no Vindouro.

Progredindo em Qualidade e Quantidade

Porém, por que não o fazemos? Ou melhor, por que não o praticamos em maior quantidade e melhor qualidade?

Com certeza, todos nós conhecemos alguém que faz muitas boas ações com os demais. “Sim”, diremos, “mas ele(ela) não sou eu. Eu sou um cara legal, mas não como ele(ela). E não consigo ser como ele(a): Não é o meu estilo!”

De certo modo isto é verdade: nem todas as pessoas conseguirão estudar e conhecer profundamente todo o Talmud nem serão proficientes no Código de Leis Judaico. Isto depende de certos dons que nem todos têm e não serão capazes destas tarefas gigantescas. Mas não se iludam: todos são capazes de ser um(a) Baal(at) Hessed, mestres na arte de ajudar os demais e de querer beneficiar o próximo.

Foi isto que o Profeta Mihá nos ensinou: entre para este ramo de atividade, o negócio de Hessed! Não é necessário capital inicial, nenhum edifício para sediar o negócio e nem correr atrás de clientes.

Frequentemente ouvimos no rádio ou lemos anúncios oferecendo às pessoas entrar num negócio: ‘Ligue para o telefone tal e nós o ensinaremos a vender e ficar rico em poucas lições!’ ou ‘Abra sua empresa utilizando nossa técnica e ganhe muito dinheiro!’ ou ‘Trabalhe em sua casa e fique milionário’.

Na verdade não precisamos ligar para o tal número; há oportunidades de Hessed bem debaixo de nosso nariz. Saibam: cada um de nós pode se transformar e ser ‘Aquele(a)’ especialista em Hessed.

Creio que outro motivo para não vivermos como ‘profissionais’ do Hessed é um tremendo medo de não sermos felizes se constantemente estivermos dando e ajudando aos outros, porque não teremos vida particular, não viveremos para nós e isto impedirá nossa felicidade. E todos querem ser felizes!

A grande ironia é que a verdade é exatamente o oposto deste pensamento. Quanto mais doarmos, mais felizes seremos. E, ao contrário, quanto mais centrada em si mesmo uma pessoa for, mais infeliz será.

Quanto mais nos entrosarmos, mais os problemas dos demais nos interessarão. A pessoa centrada em si mesma pensa que o mundo gira ao seu redor e tudo deve ocorrer conforme ela deseja; por causa disso, mais chateada, deprimida, incomodada e irritada ela se torna, uma vez que pensa: “Eu mereço, eu desejo!”

A personalidade em si de uma pessoa doadora é mais feliz. O mundo não gira ao seu redor e, conseqüentemente, há menos coisas que a chateiam, incomodam e irritam.

Este problema é marca registrada da sociedade moderna atual: a sociedade é tão absoluta e completamente voltada para si mesma que as pessoas, em geral, vivem permanentemente descontentes e chateadas com as trivialidades da vida.

Como colocar o Hessed em Prática

Ok! Já estamos convencidos de que precisamos mudar. Mas como fazê-lo? Estamos convencidos intelectualmente, mas como colocar a teoria na prática?

Tenho algumas sugestões. A primeira é: interprete o papel de uma pessoa bondosa, generosa e preocupada com os demais, o papel de quem ama o Hessed.

Alguém poderá dizer: “Mas isto é hipocrisia! Não é ser honesto!”

Não! Esta é a maneira pela qual a Torá nos orienta para fazer as coisas, pois a Torá conhece a profunda sabedoria contida na personalidade dos seres humanos, que se revela da seguinte maneira: as pessoas são profundamente influenciadas pela maneira como agem. Em Pessach a pessoa toma 4 copos de vinho e se reclina na cadeira como uma pessoa livre, ‘interpretando o papel’ de um homem livre e age como se fosse um rei. A Torá nos garante: a pessoa se molda conforme suas atitudes. Precisamos praticar até aquilo virar parte de nós.

É isto que precisamos fazer no início, agir ‘interpretando’. Esta é realmente uma oportunidade de ouro, precisamos ansiar por ela. Quando um Meshulach (emissário de alguma instituição de caridade) bater à sua porta, de hoje em diante abra-a com um grande sorriso e cumprimente-o: “Shalom Aleichem (Seja bem vindo)! Como vai o senhor? Sente-se. Posso lhe servir algo para beber? Como está sua família?” Haja como se aqui estivesse uma oportunidade de ouro, um ‘negócio da China’. E repita quantas vezes for possível até que este comportamento penetre em sua alma, mente e coração, pois realmente é uma oportunidade de ouro.

Isto levará a uma ‘revolução’: As pessoas carentes e os emissários de instituições não entenderão mais nada! “O que está acontecendo por aqui?” Eles baterão em nossas portas e não serão mais tratados como ‘shlepers’ (coitados) ou incômodos. Não mais terão que receber uma moeda e uma ‘porta na cara’; serão agora tratados como seres humanos: receberão um sorriso, um pedaço de bolo, um café ou um chá.

E, da próxima vez que estiver dirigindo e ver um conhecido parado no ponto de ônibus, abaixe o vidro e pergunte: “Posso levá-lo para algum lugar?”, com um sorriso.

Na próxima vez que vir uma senhora saindo do supermercado, toda atrapalhada com tantos pacotes de compra, diga: “Posso ajudá-la a levar as sacolas até o carro?”

Ajamos assim por uma, 2 semanas, um mês, quatro, 6 meses até que, de repente, sabe o que acontecerá com você, comigo e os demais? Começaremos a mudar nossa mentalidade e passaremos a pensar que, ao vermos alguém necessitando de auxílio, não mais olharemos primeiro se esta pessoa pertence ao nosso círculo de amigos ou usa chapéu ou kipá ou a cor de suas roupas, mas sim enxergaremos um ser humano e diremos: “O que posso fazer por esta pessoa?”

Com esta ‘revolução’ que estou propondo, de olhar para as pessoas e pensar: “O que posso fazer para beneficiá-lo(a)?”, e praticar isto até que se torne parte integral de nossa mente, o Hessed impregnará nossa personalidade, virará algo instintivo como uma segunda natureza.

Hessed ‘Instintivo’

Deixem-me lhes contar uma história sobre Hessed ‘instintivo’.

Esta história aconteceu em 27 de dezembro de 2002 em Israel, na cidade de Hevrón. Na Yeshivá de Hevrón, todos os alunos estavam reunidos no refeitório para o jantar de Shabat. Quatro alunos estavam encarregados de servir os demais naquela noite. Um destes quatro rapazes chamava-se Noah Apter Z’L.

Enquanto se preparavam para servir a sopa, dois terroristas palestinos vestindo uniformes do exército israelense invadiram a cozinha e começaram a disparar. Três rapazes caíram mortos imediatamente, mas não conseguiram acertar Noah Apter.

Porém, agora, o rapaz estava frente a um grande dilema: Ele tinha uma arma. Deveria atirar de volta contra os terroristas armados de metralhadoras ou tentar se esconder debaixo da mesa ou talvez fazer algo diferente? Optou pela última opção: correu até a porta que separava a cozinha do refeitório, trancou-a e atirou a chave pela janela para que os terroristas não entrassem no refeitório. Eles o encheram de balas e Noah Apter caiu morto ao lado da porta.

Digam-me uma coisa: Será que Noah Apter ficou fazendo cálculos sobre qual opção escolher? Não! Não havia tempo para pensar! Foi uma reação instintiva, pois, aparentemente, este rapaz estava tão impregnado com a regra ‘O que posso fazer para beneficiá-los?’ que, naquele momento de crise, sua essência veio à tona. Sua essência era: ‘O que posso fazer por esta pessoa?’

Comece por Sua Família

Conforme começamos a pensar: ‘O que posso fazer por esta pessoa?’, gostaria de trazer três sugestões práticas para que, a partir deste Rosh HaShaná, possamos por em prática esta nova mentalidade: ‘O que posso fazer por ele? ‘O que posso fazer por ela?’

Comecemos por alguém em nossas próprias famílias. Nossas famílias estão bem diante de nossos narizes. Vire-se para sua esposa e pense: “O que posso fazer por ela?” Você chega em casa domingo à noite e a louça de Shabat ainda está lá na pia, esperando para ser lavada. Não diga: “Isto é trabalho dela!” e sim: “O que posso fazer por ela? Como posso tornar sua vida mais fácil?” Vá e lave você.

Pergunte-se: “O que posso fazer por ele? Como posso tornar seu dia mais fácil?”.

E se você não tem um cônjuge, mas tem pai, mãe, irmão, irmã, avô, avó, tio, tia ou qualquer outro familiar... Não vivemos isolados numa ilha! Pergunte a este parente: “O que posso fazer por você?”

É assim que nos tornamos pessoas amantes do Hessed e devemos nos portar em nossa vida.

Hessed Diário

Minha segunda sugestão é: Comecemos, a partir de hoje, um programa que chamaremos de ‘Hessed Yomi’ – um ato de bondade por dia. Todos precisamos nos perguntar, antes de dormir: “Já fiz ao menos um ato de bondade – Hessed – hoje?”

Nossos Sábios explicaram que o Povo Judeu foi redimido do Egito por causa do Hessed. O livro ‘Tana Devei Eliahu’, escrito pelo Profeta Eliahu, conta que os Judeus estavam em situação desesperadora no Egito e perguntavam-se: “Como poderemos sair deste amargo exílio, desta terrível situação?”

Nossos Sábios nos relatam que eles se reuniram e fizeram entre si um pacto. O pacto foi: “Precisamos praticar Hessed uns com os outros”.

Continua o livro ‘Tana Devei Eliahu’: “O Todo-Poderoso viu isto, Seu Povo sozinho e desesperado, oprimido e massacrado e disse: ‘Eis um Povo que precisa desesperadamente de Hessed para si e, mesmo assim, ocupam-se em praticar atos de bondade uns com os outros. Eles, escravizados, estão praticando Hessed e Eu, o Todo-Poderoso, a essência do Hessed, não vou fazer Hessed com eles? ’ E assim eles foram libertados do Egito. Foram redimidos porque agiram com bondade e amabilidade com o próximo”.

Esticando o Cobertor para os Demais

Muitos se perguntam: “Mas não consigo ser legal, agradável e simpático com todos...”

Saiba que todos nós podemos e somos capazes de ser gentis e legais com os demais.

Saímos do Egito, mas passamos pelo Holocausto. A característica da bondade, do compartilhamento também esteve lá. Gostaria de lhes trazer um trecho de um discurso proferido por Howard Shulz, o presidente da Starbucks Corporation, a maior cadeia varejista de café do mundo. Este discurso foi proferido na Faculdade de Administração da Universidade de Columbia, em Nova York. Eis o que Howard Shulz disse:

“... Um grupo de pessoas muito ricas visitou Israel e entre suas diversas visitas, encontrou-se com o Rabino Natan Tsvi Finkel Shelita, diretor da Yeshivá de Mir em Jerusalém. Eis o conteúdo daquele encontro”:

‘Sabíamos que o Rabino Finkel estava num grau avançado da doença de Parkinson. O Rabino estava sentado à cabeceira da mesa e nossa reação natural foi olhar para o outro lado. Não queríamos envergonhá-lo. Estávamos olhando para outra direção quando ele nos perguntou: ‘Cavalheiros, o que podemos aprender do Holocausto?’ Ele voltou-se para uma das pessoas que, não sabendo o que responder, murmurou algo como: ‘Nunca esqueceremos do Holocausto’. Mas o Rabino pareceu não ter gostado da resposta e olhou em volta como se procurasse outra pessoa para responder à sua pergunta; nós todos o olhávamos

com uma expressão de: ‘Por favor, eu não!’. “Então ele falou: ‘Cavalheiros, deixem-me lhes contar sobre a essência do espírito humano. Como vocês sabem, durante o Holocausto as pessoas foram transportadas da maneira mais desumana possível, em vagões de transporte de gado. Quando finalmente chegavam a seu destino, algum campo de concentração ou de trabalho forçado e iam dormir de noite, apenas uma pessoa recebia um cobertor em todo o barracão. Esta pessoa tinha uma decisão a tomar: ‘Vou puxar o cobertor e deixar outras cinco ou seis pessoas descobertas ou vou me apertar com elas para todos podermos ficar aquecidos?’ ‘E continuou o Rabino Finkel: ‘Aquelas pessoas esticavam o cobertor para os demais!’”

“ ‘Cavalheiros’, ele disse, ‘peguem seus cobertores, voltem para os Estados Unidos e estendam sobre outras cinco pessoas! ’”

Esta é a essência do espírito humano, a essência do Hessed. Foi o que nos salvou do Egito, fez com que o Povo Judeu sobrevivesse ao Holocausto e nos tirará desta longa e amarga Galut (exílio).

Protegendo aqueles que estão
numa Terra distante

Ao procurarmos ‘Ahavat Hessed’ – amar a prática de atos de bondade – dando e sendo agradáveis com os demais, algo esplêndido irá acontecer. Como o Rambam (Maimônides) já nos ensinou: “Apenas trate as pessoas da maneira que gostaria de ser tratado”. Não nos preocupemos se seremos recompensados por cada ato que fizermos. Apenas os façamos: ajudemos e sejamos gentis com os demais e logo a salvação de que cada um precisa chegará.

Os Baalei Hessed – pessoas que praticam de maneira constante atos de bondade – são tratados por D’us de maneira diferenciada. Seria como se o nosso Hessed ‘tocasse’ o coração de D’us, alegoricamente falando (pois D’us não tem corpo nem forma).

Você já enviou ou conhece alguém que enviou um filho ou filha a Israel, ou qualquer outro país distante, para estudar? Lembra-se da cena no aeroporto? Você chorou? Por que chorou? Porque você tem medo e eles também, pois estão indo para um local distante, sem saber que tipo de problemas enfrentarão, se haverá alguém para ajudá-los, onde passarão as festividades judaicas, se ficarão sozinhos ou não, quem será o ‘ombro amigo’ a quem poderão recorrer, quem os auxiliará em momentos de necessidade ... Você está com medo e está rezando para que este filho ou filha encontre alguém bom em Israel, que seja gentil e protetor, que os convidem e esteja por perto para qualquer coisa que venham a precisar.

E quando você descobre que apareceu essa pessoa boa que você nem conhece e nunca encontrou, qual será seu sentimento por esta pessoa? Você não desejaria retribuir toda a bondade que ele fez, mandar-lhe um presente e agradecer imensamente pelo que fez e está fazendo por seu filho ou filha?

É isso que D’us está sentindo. Ele nos mandou para este mundo, mandou nossa alma para cá. Todos somos filhos de D’us. E o mundo aí fora é assustador, há muitas coisas que podem dar errado.

Quando abrimos nosso lar ou estendemos uma mão para ajudar outra pessoa, estamos ajudando diretamente ‘um filho que D’us enviou para um local distante’, uma pessoa que D’us colocou neste mundo.

O Todo-Poderoso gosta disto, Ele sente-se bem com nossa atitude e por este motivo nos tratará diferenciadamente. Como aquele pai que mandou seu filho ou filha para Israel, D’us nos agradecerá e nos mandará todas Suas bênçãos, bondade e dádivas.

Protegendo aqueles que estão
numa Terra distante

Gostaria de concluir com uma história que foi contada pelo Rabino Paysach J. Krohn Shelita (EUA), autor da série de livros ‘The Maggid Speaks’ (Jóias do Maguid).

Durante catorze anos, Howie Lebowitz dividiu seu tempo provendo serviços médicos entre sua cidade natal de Boston (EUA) e a sagrada cidade de Jerusalém. Formado pela Universidade de Harward, onde depois lecionou, o Dr. Lebowitz era um médico de reputação impecável.

Quando trabalhava no Hospital Brigham, em Boston, o Dr. Lebowitz era o encarregado do atendimento de emergência. Certa tarde, quando andava pelo setor, os alto-falantes anunciaram um alerta ‘Código Azul’ que indicava uma situação de emergência com risco de vida. Uma mulher havia sofrido um severo ataque cardíaco na cafeteria do andar de cima e estava com uma parada cardíaca. O Dr. Lebowitz pegou seu equipamento e correu para cima, onde encontrou outros médicos já trabalhando sobre a mulher.

Todos os clientes da cafeteria haviam sido afastados pelos seguranças e somente o corpo médico podia se aproximar. Dr. Lebowitz correu em direção ao grupo de médicos. “Como está a mulher?”, perguntou a um médico que estava de joelhos no chão atendendo a enfartada.

“Creio que chegamos tarde”, o médico respondeu. “Já estamos trabalhando sobre ela há algum tempo e sem resposta”.

“Deixe-me tentar”, falou o Dr. Lebowitz, movendo-se rapidamente para perto da paciente. Viu que não havia batimento cardíaco e inseriu um cateter para que ela pudesse receber adrenalina. Ele pegou um desfibrilador, um aparelho que dá um choque elétrico sobre o coração, para tentar fazer com que o coração voltasse a bater num ritmo normal.

O Dr. Lebowitz tentou várias vezes conseguir um batimento cardíaco, mas sem sucesso. Os outros médicos começaram a sair da cafeteria, balançando a cabeça em desapontamento pela paciente ter morrido bem em frente a seus olhos.

Entretanto, o Dr. Lebowitz ainda não havia desistido; tentou uma quinta e uma sexta vez estimular o batimento cardíaco, sem sucesso. Percebendo que o fim se aproximava, se é que ainda não havia chegado, resolveu tentar uma última vez.

Apertou o botão de controle do desfibrilador com uma ênfase adicional e olhou para o monitor. A linha verde que estava constante na horizontal deu um salto! Havia vida! Um médico gritou, sem acreditar: “Você conseguiu um batimento cardíaco!”

Infundido de esperança e determinação, o Dr. Lebowitz trabalhou freneticamente para reanimar o coração e com muito esforço conseguiu estimular um débil pulso. Ele ordenou que a transferissem para o terceiro andar, para a Unidade de Tratamento Intensivo, onde seria tratada e monitorada constantemente.

O Dr. Lebowitz voltou para a sala de emergência para continuar com suas tarefas. Periodicamente ligava para a UTI para saber sobre a evolução das condições da mulher. Seis horas mais tarde, recebeu a boa notícia de que ela conseguira sentar-se na cama.

O Dr. Lebowitz ficou pensando se deveria subir e visitar a mulher, uma vez que não era sua paciente. Ela com certeza não o reconheceria e ele não estava procurando agradecimentos, pois estava na medicina para ajudar as pessoas, não à procura de gratidão e reconhecimento.

No final, decidiu subir. Ao entrar no quarto, ficou pensando como deveria se apresentar. Não poderia dizer: “Olá, fui eu que salvei sua vida!”.

Mas não teve que dizer uma palavra. Um homem sentado perto dela levantou-se e gritou: “É ele! É ele que salvou sua vida! É sobre ele que eu estava lhe falando!”

“E quem é o senhor?”, perguntou o Dr. Lebowitz, estendendo sua mão para o cavalheiro.

“Eu sou o marido dela e vi como o senhor trabalhou para salvar a vida de minha esposa”.

“Onde o senhor estava?”, perguntou o Dr. Lebowitz.

“Eu estava com ela quando tudo aconteceu, mas aí os seguranças pediram para eu sair e fiquei assistindo tudo do outro lado da parede de vidro. Eu vi quando os outros médicos desistiram e o senhor continuou tentando, até trazê-la de volta para a vida”.

A mulher começou a chorar incontrolavelmente. O médico ficou lá um pouco embaraçado, aguardando que ela se recompusesse. Ao se acalmar, ela falou as seguintes palavras que o Dr. Lebowitz nunca irá esquecer:

“O que irei dizer? Obrigada? Isto é algo que se diz a alguém que lhe segura uma porta, não para alguém que acabou de lhe dar sua vida de volta. Mas quero lhe dizer o seguinte: Amanhã, quando voltar para casa e vir meus filhos, vou me lembrar do senhor e dizer: ‘Obrigada, Dr. Lebowitz’. Daqui a uma semana, quando estiver caminhando com meu marido, vou lembrar do senhor e dizer: ‘Obrigada, Dr. Lebowitz’. Na próxima vez que sair com minhas amigas, vou me lembrar do senhor e dizer: ‘Obrigada, Dr. Lebowitz’. Daqui a duas semanas, quando celebrar meu aniversário, vou me lembrar do senhor e dizer: ‘Obrigada, Dr. Lebowitz’”.

Suas palavras foram simples, mas poderosas.

Ao sair do quarto, ele andou pelo corredor já vazio àquela hora da noite. Aí, sem saber exatamente o porquê, começou a falar: “Quando voltar para casa e vir minha esposa e filhos, vou dizer: ‘Obrigado, D’us’. Na próxima vez que subir as escadas e não ficar sem fôlego, direi: ‘Obrigado, meu D’us, pela vida’”.

O Dr. Lebowitz voltou para a sala de emergência uma pessoa humilde e agradecida.

Hessed foi o que nos tirou do Egito, nos fez sobreviver durante estes milênios no exílio e, se D’us quiser, trará a vinda do Mashiach em breve, em nossos dias, Amén.

Shaná Tová a Todos!